Meu pai me disse certa vez que nasci fruto de um enorme desejo e de uma espécie de amor que ele próprio desconhecia até então. Me contou que na noite em que cheguei ao mundo, desceu à rua em frente a maternidade, sentou na guia da calçada e chorou. Chorou porque seu maior anseio à época, ter um filho, se realizara. Mas chorou também porque naquele momento jurou a si mesmo que seria um pai melhor do que o que teve. Jurou que não bateria em seu filho com fios, jurou que não permitiria que uma mulher neurastênica e ignorante como sua mãe, deformaria as costas de seu rebento com o propósito de debelar uma gripe com ignorância e violência ao invés de usar ciência e compaixão.
Meu pai, acima de tudo, naquele choro público e contido, e que pelo local, horário e circunstâncias, mais poderia ser confundido com um bêbado a lamentar o fim da garrafa, entendeu, vidente, que sua vida mudara e que seu trabalho precípuo após aquela noite, era deixar seu filho nunca se sentir inseguro. Sim. É essa a missão de todo pai. Receber os golpes, assimilá-los, até que por força da ordem da vida, os filhos se tornem pais dos pais, quando a velhice coxa e impiedosa subitamente aparecer.
O problema é que meu pai parece ter gostado de ser pai. E foi pai de muitos. De muitos alunos. De iletrados que transformou em letrados. Deu bolsas de estudo a pobres e rotos. E como o professor que foi e também como pai de muitos que foi, percebeu, astuto, que não era suficiente ensinar as miudezas de nosso traiçoeiro idioma. Precisava ser exemplo. Porque literatura sem o caráter que a ergue, é como um castelo de areia que nada transforma e se rompe ao bater da primeira onda.
Mesmo nesse momento, com as entranhas rasgadas pela perda – razão de aprendizado primordial da vida, vez que lidar com vitórias é condão para o mais medíocre – vejo na vida de meu pai a vitória e a hombridade que sempre almejei para a minha própria. Tive um pai que sempre esteve presente, que fez mais por mim do que jamais mereci – é cristalino que ele discordaria ferozmente disto por mera fidalguia e afeto. Tive um pai que me ouviu e que se importou. Isso é mais do que qualquer um pode esperar hodiernamente. Tive pai. Tive pai. Tive pai.
Mas eis o seu maior mérito. Maior do que qualquer presente infantil, maior do qualquer bem material que possa ter me dado em vida ou me legado após morte. Meu pai, naquela mesma noite em que nasci, sentado naquela mesma calçada, chorando, bêbado de amor e realização pessoal, decidiu que eu jamais seria dele. Nunca seria de Luiz. Seria sempre e tão somente de Humberto. E Humberto não seria de Luiz porque sabia que nunca poderia ser. Meu pai consignou solene que a vida de seu filho pertenceria ao próprio filho e a mais ninguém. “Beto, te fiz para o mundo. Para os teus sonhos. Para tuas conquistas. Para tuas aspirações". Naquele micro segundo meu pai entendeu que apenas se eu fosse o dono de minha própria vida, poderia então, genuinamente, e de alguma maneira, também ser dele. De Luiz. Vislumbrou que quanto mais quisesse a minha vida para MIM, mais minha vida também seria DELE. E justo nesse momento de abdicação, nessa fração de zero egoísmo onde me entregou ao universo, aquele jovem professor se tornou um mestre. Naquele exato segundo, aprendeu o que é o amor impoluto. E desde então nunca foi o mesmo. E, também por consequência, mudou a própria vida, cunhou a do filho e ajudou a de tantos outros alunos, amigos, e qualquer um que, por sorte, tenha esbarrado com um humanista de tal quilate.
Mas que bobagem, Charles! Você não morreu. Vive em cada átomo de meu corpo e de minha irmã. De suas netinhas. Reside na esposa eterna, mãe fundamental. Na lembrança inescapável de tantos e, sobretudo, nas digitais das páginas viradas dos incontáveis livros que leu, seus grandes amigos e companheiros de noites insones.
Voa, pai! Guimarães, Graciliano, Doyle, Pessoa, Joyce, José Régio e tantos outros te aguardam. Peça licença, sente à mesa, beba a cerveja que o câncer lhe tomou, e lhes diga como os livros salvaram a sua vida ainda bem jovem, o resgatando da pobreza, do sofrimento, da solidão juvenil, o catapultando para o saber, para a erudição e para um mundo melhor. Conte como possibilitaram criar sua família com absoluta dignidade mesmo quando tudo parecia escuro e improvável. Sim, os livros...sempre eles.
O que pode ser mais bonito do que isso? Um homem, um pai, um professor, um mestre, que mudou a vida de todos em sua volta apenas com meras folhas de papel, um quadro negro, as mãos sujas de giz e uma caneta mágica. O que é mais belo do que alguém que tornou o mundo melhor apenas porque ousou acreditar que poderia.
Boa viagem, meu pai. Poeira das estrelas...