CONTO #38: Uma pequena viagem (Ray Bradbury)



          Publicado pela primeira vez na revista de ficção científica Galaxy, em 1951, Uma pequena viagem (A little journey) é o conto de abre a coletânea A cidade inteira dorme e outros contos
          No conto o autor nos situa em outro planeta, em um futuro distante. Nessa realidade alternativa, viagens interplanetárias são possíveis e corriqueiras. Somos, então,  apresentados às personagens principais: um grupo de senhoras da melhor idade, que economizaram durante anos e anos a fio para fazer a viagem final. Mas não se trata exatamente disso que você está pensando: Essa viagem, vendida por uma figura pouco confiável, mas cheia de lábia, é uma viagem a caminho de Deus.
          Como não poderia deixar de ser, a data da viagem é marcada no ato da compra do pacote. E adiada, assim que se aproxima. Muito bem, sem problema, elas aguardam a próxima data marcada. E, mais uma vez, é adiada. Essa situação se repete vezes e vezes, até que elas se cansam. Querem uma data definitiva, e querem saber o motivo do atraso.
          O desfecho da história é, no mínimo, intrigante.


"Havia duas coisas importantes - uma, que ela era velha demais; 
outra, que o sr. Thirkell a estava levando para Deus. E ele não tinha
dado um tapinha na mão dela e dito: "Senhora Bellowes, vamos partir para o espaço 
em meu foguete e e
ncontrá-Lo juntos"?
(p.7)

"Parece que fizeram uma coisa terrível conosco", ela disse. "Não tenho dinheiro para voltar
para casa na Terra e tenho orgulho demais para ir ao governo e contar contar
a eles que um homem comum como este nos tapeou, levando
todas as nossas economias. Não sei como vocês se sentem quanto
a isso, todas, vocês, mas o motivo por que todas viemos é que tenho
oitenta e cinco anos e você tem oitenta e nove, e você setenta e oito e todas nós
estamos nos encaminhando para os cem anos, e não há nada na Terra para a gente, e não parece  haver nada em Marte, Também. "
(p.13)


Onde encontrar Uma pequena viagem: A cidade inteira dorme, de Ray Bradbury

CONTO #37: Uma questão temporária (Jhumpa Lahiri)



          Publicado pela primeira vez na revista The New Yorker, em 20 de abril de 1998, e mais tarde compondo a coletânea de contos "Intérprete de males", Uma questão temporária (A temporary matter) nos conta a história desse jovem casal cujo relacionamento está, aos poucos, desmoronando.
          A notificação de que a eletricidade seria cortada nos próximos dias durante uma hora, acaba interferindo na rotina do casal. Conforme os dias passam, o leitor entra em contato com os problemas que os dois vem enfrentando já há algum tempo, principalmente desde a perda de um bebê muito esperado.
          A autora não entrega de bandeja o que o que está acontecendo; o leitor é levado a achar que sabe direitinho do que o conto se trata - mas é enganado. Nada nos prepara para o choque de realidade nua e crua que teremos diante dos olhos. A crueldade com que ambas as partes se vinga, lenta e dolorosamente, do outro não é agradável de se acompanhar. É quase como se estivéssemos observando a uma cena que se desenrola atrás de pesadas cortinas, sendo afastadas lentamente. E o final do conto é avassalador.


"A notificação informava que era uma questão temporária: por cinco dias
a eletricidade seria cortada por uma hora, a partir das oito da noite. Uma linha caíra na
última tempestade de neve e os operários iriam aproveitar as noites mais brandas para arrumá-la.
O trabalho afetaria apenas as casas da tranquila rua arborizada na qual Shoba e Shukumar
moravam havia três anos, de onde se podia ir a pé até as lojas com fachada de
tijolos e o ponto do bonde."
(p. 9)

"Uma vez, essas imagens de paternidade haviam perturbado Shukumar, somando-se à ansiedade de ainda ser estudante aos 35 anos. Mas naquela manhã de outubro, bem cedo, as árvores ainda pesadas com folhas de bronze, ele deu as boas-vindas à imagem pela primeira vez."
(p. 11)

"Em algum momento da noite, ela o visitava. Quando ele a ouvia
chegando, deixava de lado o romance e começava a digitar frases. Ela
pousava as mãos nos ombros dele e olhava junto com ele a luminosidade 
azulada da tela do monitor. "Não trabalhe demais", ela dizia
depois de um ou dois minutos, e ia para a cama. Era o único momento
do dia em que o procurava e, no entanto, ele passara a abominar aquilo. "
(p. 16)

"Nunca falava com ele sobre Shoba; uma vez, quando ele mencionou a morte do bebê,
ela ergueu os olhos do tricô e disse:
- Mas você nem estava lá. "
(p. 17)


Onde encontrar Uma questão temporária: Intérprete de Males, de Jhumpa Lahiri

CONTO #36: Ligeia (Edgar Allan Poe)



             Publicado pela primeira vez em 1838, Ligeia (cuja pronúncia se aproxima do nome "Lídia") conta a história do homem que se casa com o amor de sua vida. Jovem, linda, inteligentíssima, cheia de vida, Ligeia preenche a vida do narrador de tal maneira que, ao adoecer repentinamente e deixar de existir, deixa um vazio imenso, impossível de ser preenchido.
               Num primeiro momento, nosso narrador tenta escapar da dor da perda irreparável abusando do ópio. Essa fuga da realidade logo se torna um fardo, e, um belo dia, entra em cena uma nova moça. Linda e cheia de vida, mas de uma beleza muito diferente da de Ligeia, Roweena encanta o narrador que acaba contraindo novo matrimônio. Porém, ele não se engana: Roweena não é páreo para Ligeia. Comparações desta com a primeira esposa são inevitáveis ao longo do tempo.
            Até que, certo dia, Roweena também adoece. Paro meus comentários sobre o enredo da história por aqui, mas o desfecho é, como não poderia deixar de ser em se tratando de Poe, assustador.  

"Juro pela minha alma que não posso lembrar-me de como,
quando ou mesmo precisamente onde travei conhecimento, pela primeira vez,
de Lady Ligeia. desde então, longos anos decorreram, e os muitos sofrimentos por que passei
perturbaram-me a memória. Ou talvez não possa recordar-me desses pormenores agora porque, na verdade, o caráter de minha bem-amada, seu raro saber, seu singular embora plácido
tipo de beleza, a emocionante e aliciadora eloquência da sua veludosa fala
musical, tivessem conquistado meu coração tão furtiva e 
constantemente que mal me dei conta deles então."
(p.17)

"Pois Deus não é mais que uma grande vontade, penetrando todas as coisas
pela qualidade de sua aplicação. O homem não se entrega aos anjos, nem se rende
inteiramente à morte, senão pela fraqueza de sua débil vontade."
(p.22)

"Eu disse que seu saber era tal que jamais encontrara semelhante em mulher alguma,
mas onde está o homem que perlongou com êxito com êxito todas as amplas áreas da ciência moral, física e matemática?"
(p.23)

"O vento soprava com força atrás das tapeçarias, e eu quis
mostrar-lhe (coisa que, confesso, eu mesmo não acreditava de todo) que aqueles
respiros quase inarticulados e as sutis variações das figuras sobre a parede não eram
senão efeitos naturais do costumeiro soprar do vento."
(p.32/33)

O Rugido dos Dinossauros (por Hpcharles)





Semana que passou, ao mesmo tempo em que ululavam nas redes sociais considerações pobres, rasteiras, coalhadas de inveja e mágoa sobre o papel dos booktubers em nossa literatura, sobre a pertinência da remuneração acerca de tal atividade, eu via um divertido documentário sobre a pré-história. 

Notei que todas as vezes em que um dinossauro se encontrava em vias de morrer, cair de algum penhasco, sofrer algum tipo de evento trágico, emitia um enorme rugido, para logo após ser consumido por seu inevitável fim. Imaginei então, que à beira da extinção, múltiplos grunhidos teriam ecoado simultaneamente por conta de um cataclisma que finalmente dizimou, para todo o sempre, os obtusos titãs do passado.

Uma analogia repentina me deu um tapa e não levou mais do que uma fração de segundo para que quaisquer sentimento de injustiça ou de indignação que existisse dentro de mim em relação a tal anacrônica e caduca discussão sumisse e eu me pusesse então a, divertidamente, rir e a brincar com minha cachorrinha para, logo depois, ir dormir tranquilo e sem sobressaltos.

É colossal a tolice de se afligir com algo que já foi decidido. Decidido pelo mercado, decido pelos leitores, decido pelo tempo que nunca para. O que sobra é cochicho de natureza vetusta, é ladainha improfícua, é ranço infantil, é bater de pezinho. O booktuber continuará e atingirá milhões de pessoas. As editoras, os sites de venda, o público já reconheceu isso, já aderiu a tal FATO e passa a premiar e a enaltecer a quem se destaca no meio. Assim como, pasmem, em qualquer outra área.  Isso só não é notório para quem vive na montanha, encastelado, ressentido, saudoso e inconsolável, envolto em sua mortalha de soberba e empáfia.

Não há sentido em alongar essa questão. Melhor ir brincar com a cachorrinha.

Nietzsche escreveu com propriedade:

"Agradam-me os valentes; não basta, contudo, saber manejar uma boa espada; é preciso saber também a quem se fere! Muitas vezes há mais valentia em se abster e passar adiante, a fim de se reservar para um inimigo mais digno...por isso há muitos mais adiantes dos quais deveis passar; sobretudo ante a canalha numerosa que vos apedreja os ouvidos, falando-vos do povo e das nações".
  
Desta forma, lembremos que ao escolher nossos inimigos, nós os honramos. Escolhamos, portanto, com pertinência e critério nossas guerras. Essa é a mensagem contida no texto. E não se enganem, não há dúvidas da ineficiência dessa parva resistência, da impotência de tal questíuncula. Não há batalha a ser ganha aqui, pois ela já foi vencida faz tempo. O que há é apenas o diminuto som que se ouve do outro lado. O desespero zunindo baixinho nada mais é do que o rugido dos dinossauros face a seus derradeiros destinos, face às mudanças, face ao novo. Face ao penhasco. Vocês conseguem escutar? Nem mesmo os cascos?

Como assim não ouvem?!

Vamos lá, eu peço a vocês a gentileza de não  perderem esse momento histórico. Fechem os olhos, agucem os ouvidos, se concentrem um pouco. Ouviram?! Não?! Eu sei que o som é baixo. Mas tentem. Ouviram o rugido? Ainda não? 

Talvez seja porque o som do rugido se parece mais com o impubescente ruído do choro de uma criança.






Ao Mestre Com Carinho (por Hpcharles)



Meu pai me disse certa vez que nasci fruto de um enorme desejo e de uma espécie de amor que ele próprio desconhecia até então. Me contou que na noite em que cheguei ao mundo, desceu à rua em frente a maternidade, sentou na guia da calçada e chorou. Chorou porque seu maior anseio à época, ter um filho, se realizara. Mas chorou também porque naquele momento jurou a si mesmo que seria um pai melhor do que o que teve. Jurou que não bateria em seu filho com fios, jurou que não permitiria que uma mulher neurastênica e ignorante como sua mãe, deformaria as costas de seu rebento com o propósito de debelar uma gripe com ignorância e violência ao invés de usar ciência e compaixão.

Meu pai, acima de tudo, naquele choro público e contido, e que pelo local, horário e circunstâncias, mais poderia ser confundido com um bêbado a lamentar o fim da garrafa, entendeu, vidente, que sua vida mudara e que seu trabalho precípuo após aquela noite, era deixar seu filho nunca se sentir inseguro. Sim. É essa a missão de todo pai. Receber os golpes, assimilá-los, até que por força da ordem da vida, os filhos se tornem pais dos pais, quando a velhice coxa e impiedosa subitamente aparecer.

O problema é que meu pai parece ter gostado de ser pai. E foi pai de muitos. De muitos alunos. De iletrados que transformou em letrados. Deu bolsas de estudo a pobres e rotos. E como o professor que foi e também como pai de muitos que foi, percebeu, astuto, que não era suficiente ensinar as miudezas de nosso traiçoeiro idioma. Precisava ser exemplo. Porque literatura sem o caráter que a ergue, é como um castelo de areia que nada transforma e se rompe ao bater da primeira onda.

Mesmo nesse momento, com as entranhas rasgadas pela perda – razão de aprendizado primordial da vida, vez que lidar com vitórias é condão para o mais medíocre – vejo na vida de meu pai a vitória e a hombridade que sempre almejei para a minha própria. Tive um pai que sempre esteve presente, que fez mais por mim do que jamais mereci – é cristalino que ele discordaria ferozmente disto por mera fidalguia e afeto. Tive um pai que me ouviu e que se importou. Isso é mais do que qualquer um pode esperar hodiernamente. Tive pai. Tive pai. Tive pai.

Mas eis o seu maior mérito. Maior do que qualquer presente infantil, maior do qualquer bem material que possa ter me dado em vida ou me legado após morte. Meu pai, naquela mesma noite em que nasci, sentado naquela mesma calçada, chorando, bêbado de amor e realização pessoal, decidiu que eu jamais seria dele. Nunca seria de Luiz. Seria sempre e tão somente de Humberto. E Humberto não seria de Luiz porque sabia que nunca poderia ser. Meu pai consignou solene que a vida de seu filho pertenceria ao próprio filho e a mais ninguém. “Beto, te fiz para o mundo. Para os teus sonhos. Para tuas conquistas. Para tuas aspirações". Naquele micro segundo meu pai entendeu que apenas se eu fosse o dono de minha própria vida, poderia então, genuinamente, e de alguma maneira, também ser dele. De Luiz. Vislumbrou que quanto mais quisesse a minha vida para MIM, mais minha vida também seria DELE. E justo nesse momento de abdicação, nessa fração de zero egoísmo onde me entregou ao universo, aquele jovem professor se tornou um mestre. Naquele exato segundo, aprendeu o que é o amor impoluto. E desde então nunca foi o mesmo. E, também por consequência, mudou a própria vida, cunhou a do filho e ajudou a de tantos outros alunos, amigos, e qualquer um que, por sorte, tenha esbarrado com um humanista de tal quilate.

Mas que bobagem, Charles! Você não morreu. Vive em cada átomo de meu corpo e de minha irmã. De suas netinhas. Reside na esposa eterna, mãe fundamental. Na lembrança inescapável de tantos e, sobretudo, nas digitais das páginas viradas dos incontáveis livros que leu, seus grandes amigos e companheiros de noites insones. 

Voa, pai! Guimarães, Graciliano, Doyle, Pessoa, Joyce, José Régio e tantos outros te aguardam. Peça licença, sente à mesa, beba a cerveja que o câncer lhe tomou, e lhes diga como os livros salvaram a sua vida ainda bem jovem, o resgatando da pobreza, do sofrimento, da solidão juvenil, o catapultando para o saber, para a erudição e para um mundo melhor. Conte como possibilitaram criar sua família com absoluta dignidade mesmo quando tudo parecia escuro e improvável. Sim, os livros...sempre eles.

O que pode ser mais bonito do que isso? Um homem, um pai, um professor, um mestre, que mudou a vida de todos em sua volta apenas com meras folhas de papel, um quadro negro, as mãos sujas de giz e uma caneta mágica. O que é mais belo do que alguém que tornou o mundo melhor apenas porque ousou acreditar que poderia.

Boa viagem, meu pai. Poeira das estrelas...


Humberto Charles

                       


CONTO #35: Cemitério de bonecas (Nelson Rodrigues)



          Infelizmente não encontrei a data certa da publicação dessa história no jornal Última hora, no qual Nelson Rodrigues mantinha uma coluna intitulada A vida como ela é, presente no livro de mesmo título (uma compilação feita pelo próprio autor, em 1961).
          Esse conto destoa dos demais contidos no livro principalmente pelo tom sombrio e carregado.
          É uma história pesada, que nada tem a ver com adultério (tema da esmagadora maioria).
         Aqui, o leitor acompanha a história de um médico de meia idade, bonachão, bondoso, caridoso, etc. Era considerado um santo pela vizinhança. Adorava crianças, não podia ver um órfão que se compadecia. Até que um belo dia resolve usar todos o seu dinheiro para abrir um orfanato para meninas. Contratou uma senhora, também conhecida de todos, ex-parteira, como diretora do orfanato. Fazia questão de dizer a todos que não morava lá. Afinal, nunca se sabe o que as más línguas poderiam dizer. Abria o orfanato para jornalistas que quisessem escrever sobre esse estabelecimento maravilhoso.
          Até que um dia, um desses jornalistas publica uma matéria nada lisonjeira sobre o doutor e seu orfanato, contando a todos que aquilo nada mais era do que "uma fábrica de anjinhos". E a leitura caminha para um fim trágico e desolador.
          Conto de fazer fechar o livro, deixá-lo de lado, e pensar no quão lama o ser humano pode ser.

"Tinha 45 anos e usava ceroulas, dessas que se amarram nas canelas, com duas voltas.
Cumprimentava todo mundo, sem distinção de classe, idade ou cor. Essa cordialidade indiscriminada
impressionava muitíssimo. Dizia-se dele, de uma maneira entusiasta e unânime:
- Aquilo é um santo!
E ele:
- Faz-se o que se pode! Faz-se o que se pode!"
(p. 123)

"Sonhara que uma voz o induzira a sair, pelo mundo, em prol das crianças órfãs do Brasil.
Os amigos, assustados, inclinaram-se a ver, ali, um sintoma de insanidade mental.
Houve um, mais íntimo e confiado que os demais, que sugeriu: "Você precisa casar! Olha: eu conheço uma viúva daqui!"Mas já o destino do dr. Basílio estava traçado. "
(p. 124)



Onde encontrar o conto Cemitério de bonecasA vida como ela é, de Nelson Rodrigues
         
          

CONTO #34: Lá no Michigan (Ernest Hemingway)


          Lá no Michigan (Up in Michigan), foi escrito em 1921 e publicado pela primeira vez em 1923 no primeiro livro de Hemingway, o Three stories and ten poems. Mais tarde, o conto foi revisado pelo autor, e publicado novamente, em 1938, no livro The fifth column and the first forty-nine stories. No livro da foto acima, publicação mais recente de seus contos, não se sabe se temos a versão de 21 ou de 38.
          Eis um conto sobre a ilusão do amor e a desilusão, do mesmo amor.
          A história se passa em uma cidadezinha do Michigan, Hortons Bay; lá acompanhamos Liz, a moça contratada pelos donos do restaurante da cidade, onde sempre almoça Jim, seu interesse amoroso. Jim é um ferreiro e também um caçador, um tanto quanto rústico, que aparentemente nem dá bola para Liz. Liz é uma jovem ingênua e sonhadora, apaixonada pelo viril ferreiro/caçador.
         Certa noite, Jim e seus comparsas saem para caçar, e Liz passa a noite em claro esperando sua volta (sabia que quando eles saíam para caçar, na volta, passariam pelo restaurante). E não deu outra.
Até então, o leitor não sabe se Jim tomou ou não conhecimento do interesse da moça. Até que ele a convida para dar uma volta.
          O narrador segue contando sobre esse passeio e sobre a desilusão sofrida pela jovem moça.
          Conto simples, direto ao ponto, sem firulas.
       
"Jim Gilmore chegou a Hortons Bay vindo do Canadá.
Comprou a oficina de ferreiro do velho Horton. Jim era baixo e escuro,
tinha bigode e mãos grandes. era bom ferrador e não parecia ferreiro nem
quando estava de avental de couro. Morava em cima da oficina e comia na DJ Smith.
Liz Coates trabalhava na Smith's. A Sra Smith, mulherona muito limpa,
disse que Liz era a moça mais asseada que ela conhecia. Liz tinha
pernas bem-feitas e sempre usava aventais limpos de tecido riscado, e  Jim notou que o cabelo
dela estava sempre bem arrumado na parte de trás. Gostava do rosto dela
por ser bomito, mas nada além disso."
(p. 7)

"Ea ficou tensa porque estava apavorada e não sabia o que mais fazer.
Jim apertou-a contra a cadeira, beijou-a. Foi uma sensação tão forte, machucante,
doída que ela achou que não ia aguentar. Sentia Jim bem colocado às costas da cadeira e não estava resistindo, e de repente alguma coisa mudou dentro dela e a sensação ficou quente e agradável. Jim continuava segurando-a firme à cadeira, agora com sua anuência, e Jimsussurrou: "Vamos dar uma volta.""
(p.11)

Onde encontrar Lá em Michigan: Contos - Volume 1 - Ernest Hemingway

CONTO #33: Depois do anoitecer (Kazuo Ishiguro)

          

          Publicado pela primeira vez em 2001 na revista The New Yorker, Depois de anoitecer (A village after dark) é publicado por aqui junto ao romance Os resíduos do dia (ou, Os vestígios do dia, dependendo da edição que você encontrar por aí).
            Esse é um conto estranho. Para dizer o mínimo. Acompanhamos esse idoso, o narrador, em sua viagem de volta à sua vila de origem.
             Logo no primeiro parágrafo, sabemos que ele chega lá logo após escurecer, e mesmo fazendo décadas desde a última vez que esteve ali, ele é reconhecido, logo de cara, por uma jovem maltrapilha que o recebe muito bem, por já ter ouvido muito falar sobre ele e sua turma.
          Aparentemente, o narrador e sua turma de jovens idealistas fizeram muito sucesso naquela vila no seu tempo, influenciando a população. Aos poucos, conforme a história corre, vamos percebendo que aquela influência talvez não tenha sido tão positiva quanto ele imaginava. Mas o autor não deixa claro que tipo de influência foi essa. Estamos falando do pós guerra? Não sabemos.
          O ponto mais estranho desse conto talvez seja o momento em que, cansado de sua viagem, ele resolve bater em uma porta aleatória; é reconhecido e bem recebido. Uma vez dentro da casa, ele finalmente a reconhece como sendo a sua casa, aquela onde passara a juventude. O narrador se sente tão em casa, que inclusive resolve tirar um cochilo, ali mesmo, sem sequer perguntar aos moradores atuais se aquilo seria uma boa ideia. E durante esse sono leve, vai ouvindo vozes do passado e do presente. As do presente não se sentem nada confortáveis com aquela forma decadente que ali está, e demonstram arrependimento por terem-no seguido em algum momento.
          O único ponto de intersecção que vejo nessa história e n'Os resíduos do dia, é a espera pelo ônibus, que quando chega, coloca um ponto final em tudo o que se passou. É o "point of no return", dos personagens de Ishiguro. E a insistência dos moradores para que ele pegue esse ônibus, mostra ao leitor que ali, naquela vila, já não existe nada para aquele idoso.
         Teria ele pensado que ao voltar àquela vila , seria bem recebido e aceito pelos velhos conhecidos com a mesma pompa e circunstância e prestígio que era aceito ali quando jovem? Será que ele demonstra arrependimento?
          A estranheza do conto, pelo menos do meu ponto de vista, se dá pelo ambiente onírico, envolto em névoa (a névoa do anoitecer), e a sensação de que estamos vendo um episódio de Twilight Zone (Além da imaginação). Para mim, esse personagem está morto, e não encontrou abrigo e descanso eternos junto aos seus, como deveria ter imaginado que seria.

"Houve tempo em que eu podia viajar semanas sem fim pela
Inglaterra e continuar muito alerta, em que o efeito da viagem
sobre mim era, no máximo, o de me deixar mais afiado. Agora,
porém, que estou mais velho, fico desorientado com maior facilidade.
Assim foi que, ao chegar à aldeia, logo depois do escurecer, não consegui absolutamente me localizar.
Não dava nem para acreditar que estava na mesma aldeia onde eu vivera não muito tempo antes e onde chegara a exercer tamanha influência."
(p. 271)

""Fletcher", disse ela, "quando nós nos conhecemos, eu era moça e bonita. Idolatrava você e tudo o que dizia me parecia uma resposta. Agora, aí está você, de volta. Durante muitos anos eu quis lhe dizer que você arruinou minha vida.""
(p. 176)



Onde encontrar "Depois do anoitecer": Os vestígios do dia, de Kazuo Ishiguro

CONTO #32: Dois Hussardos (Tolstói)



          Publicado pela primeira vez em 1856, Dois Hussardos conta a história de pai e filho, duas gerações de hussardos completamente diferentes. O primeiro hussardo, pai, era um homem galante, generoso, que ajudava o próximo mesmo quando o próximo necessitado se tratava de um bêbado com uma grande dívida de jogos. Já o segundo hussardo, o filho, é um jovem aproveitador e egoísta. 
             As duas gerações de hussardos se relaciona com duas gerações de mulheres do campo; a primeira, apaixonada pelo hussardo pai, nunca se esqueceu dele; já a segunda, ao entrar em contato com o hussardo filho, se afasta bruscamente, e não tem o menor interesse por ele.
             O que Tolstoi faz aqui, é contrastar os valores sociais e morais dessas duas gerações. Ao comparar pai e filho, o autor nos mostra como a bondade e a gentileza  de antigamente deu lugar ao egoísmo e à cobiça do presente. Esse saudosismo é recorrente ao longo de todo o conto, e fica marcado com a repetição de frases como "estraguei minha mocidade", ou "aquele tempo não volta mais".

                "Estraguei minha mocidade", disse de repente para si mesmo, não porque pensasse de fato que havia estragado a mocidade - em geral, ele nem pensava no assunto - , mas apenas lhe veio à cabeça aquela frase"
(p. 395)
"A chegada do conde [hussardo pai] ao baile era esperada: o jovem bonito que o vira no hotel
já tinha avisado o decano da nobreza a respeito. A impressão produzida por aquela novidade foi variada, mas no geral não de todo desagradável. "Esse menino ainda vai nos expor ao ridículo", era o pensamento das velhas e dos homens. "E se ele me raptar?", era mais ou menos o pensamento das moças e senhoritas."
(p.405)

Onde encontrar Dois Hussardos: Contos Completos de Tolstói


CONTO #31: A cidade sem nome (H. P. Lovecraft)

          
          Publicado pela primeira vez em 1921 em uma revista amadora (fanzine?) chamada The Wolverine, A cidade sem nome (The nameless city) é o conto de H. P. Lovecraft que dá início às suas histórias sobre o mito de Cthulhu*, mitologia essa criada pelo próprio autor.
                Aqui conhecemos, então, um viajante que ao atravessar o deserto árabe se depara com essa cidade perdida no tempo, a Cidade Sem Nome, sem história, desconhecida pelo homem não por não estar contida nos livros de história, mas porque nenhum homem se atraveria a conhecê-la
                O destemido narrador, apesar de todos os avisos das vozes ancestrais para se ter cuidado e evitar aquela cidade que chegam até ele sabe-se lá como, resolve, sim, por quê, não, oras?, visitar a Cidade Sem Nome.
                 Uma vez lá dentro, ele se depara com um templo peculiar, cuja arquitetura parece bastante avançada para uma cidade abandonada há séculos como aquela, e as "esquisitices"não param por aí.
                  Excelente na arte de criar ambientes tensos, cuja tensão aumenta a cada parágrafo durante a leitura, Lovecraft vai levando o leitor através do olhar do narrador por essa "visita guiada", e acaba por deixá-lo absolutamente intrigado com o que se encontra naquele lugar abandonado e esquecido por todos.
               Como aquilo tudo foi parar ali? Quem eram os habitantes da Cidade Sem Nome? O que teria acontecido com eles?
                 Excelente porta de entrada para a obra do autor que apesar de toda a fama alcançada nas últimas décadas, ainda permanece obscuro.

OBS: A edição contendo a obra completa de H. P. Lovecraft que aparece na foto, foi lida em inglês; a tradução dos trechos a seguir foram feitas por mim.


“Quando cheguei à cidade sem nome, sabia que era amaldiçoada. Viajava sob a luz do luar por um vale assustador, e, à distância, pude ver a cidade erguendo-se sobre as areias como parte de um corpo em putrefação escapando de sua tumba destroçada. O medo escapava pelas pedras desgastadas da cidade antiga, sobrevivente de enchentes, tataravó da mais antiga pirâmide; uma aura invisível me repeliu e me obrigou a me afastar de seus sinistros segredos ancestrais que homem algum conhecia, e que nenhum homem ousaria conhecer.”
(p. 1)

“O templo, como eu vislumbrara do lado de fora, era muito maior do que os já conhecidos; e era presumivelmente uma caverna natural, já que continha correntes de ar provenientes sabe-se lá de que região. Lá dentro eu conseguia ficar de pé, ereto, mas pude observar que os altares eram da mesma altura dos outros templos. Nas paredes e teto pude ver, pela primeira vez,  alguns traços da arte pictórica da raça ancestral, pinturas curiosas quase apagadas pela ação do tempo; e em dois dos altares, pude ver com certa excitação um labirinto muito bem feito de relevos curvilíneos esculpidos. Ao erguer minha tocha, notei que o formato do teto era regular demais para ser natural, o que me deixou curioso sobre como os talhadores de pedra primitivos fizeram seus primeiros trabalhos. Seus conhecimentos de engenharia devem ter sido vastos.”(p.3)“Minha mente girava em pensamentos alucinados, e os avisos dos profetas árabes pareciam flutuar pelo deserto, vindos das terras conhecidas pelo homem, para a cidade sem nome que eles mesmos não ousam conhecer. Ainda assim, hesitei por um momento antes de avançar portal adentro e começar minha escalada abaixo cuidadosamente, pé ante pé, como quem desce uma escada.”
(p.3)

“Minha mente girava em pensamentos alucinados, e os avisos dos profetas árabes pareciam flutuar pelo deserto vindos das terras conhecidas pelo homem para a cidade sem nome que eles mesmos não ousam conhecer. Ainda assim, hesitei por um momento antes de avançar portal adentro e começar minha escalada abaixo cuidadosamente, pé ante pé, como quem desce uma escada.”
(p.4)


Onde encontrar The Nameless City: H. P. Lovecraft - The Collection

* Permaneço sem saber pronunciar "Cthulhu"; quem puder ajudar, agradeço :)

Projeto de leitura: Literatura Fundamental

Para quem não conhece, o Literatura Fundamental era um programa desenvolvido e transmitido pela UNIVESP TV. Voltado para a divulgação de livros base para a literatura, como o próprio título diz, ao longo de seus 4 anos de existência (o primeiro episódio foi ao ar em 2013 e o último, no final de 2016), apresentadores bem preparados conversavam, por cerca de meia hora, com professores universitários especialistas em determinadas obras de grandes autores, e aguçavam a curiosidade de telespectadores-leitores.

Além da discussão - bastante didática de forma a tornar-se interessante tanto para leigos como para estudantes de Les belles lettres - sobre alguma obra importante de determinado autor, o programa apresentava um panorama de sua vida e obra como um todo, bem como sugestões de leituras complementares.

Ou seja: um prato cheio para todos nós, leitores em eterna formação.

Sendo grande apreciadora do programa (e esperando, até hoje, o retorno de trabalho tão bacana), resolvi fazer a lista com todos os episódios disponíveis no canal da UNIVESP no Youtube.com, e montar um projeto de leitura sobre essa lista.

Caso mais alguém queira participar desse projeto, também, fique à vontade!
A grande maioria desses livros está em domínio público, e são fáceis de encontrar na biblioteca mais próxima.

Convite feito, vamos à lista:

- - Lista completa dos vídeos do Literatura Fundamental:
(Os livros que já foram resenhados no TLT terão links para os vídeos no canal logo abaixo de cada item; conforme as resenhas forem surgindo no TLT, essa lista será completada)

1*) Ilíada (Homero)
- Vídeo no TLT

2) Odisseia (Homero)
- Vídeo no TLT

3) Livro das Mil e Uma Noites

4) Dom Quixote de La Mancha (Miguel de Cervantes)
- Vídeo no TLT

5) Madame Bovary (Gustave Flaubert)
- Vídeo no TLT

6) Fausto (Johann von Goethe)
- Vídeo no TLT

* Vídeos numerados de 1 a 6, e postados no Youtube.com de 23 de março a 29 de abril de 2013; os vídeos postados a partir de 16 de maio do mesmo ano voltaram a ser numerados a partir do número 1; em 2016, os vídeos deixaram de ser numerados.


1) Divina Comédia (Dante Alighieri)
- Vídeo no TLT

2) As Flores do Mal (Charles Baudelaire)

3) Crime e Castigo (Fiódor Dostoiévski)
- Vídeo no TLT

4) Hamlet (William Shakespeare)
- Vídeo no TLT

5) Édipo Rei (Sófocles)
- Vídeo no TLT

34) Os moedeiros falsos (André Gide)

35) Metamorfoses (Ovídio)

81) Adeus às armas (Ernest Hemingway)

82) Os cantos (Ezra Pound) 

83) As aventuras de Huckleberry Finn (Mark Twain)

84) Desonra (J. M. Coetzee)

85) Contos (Hans Christian Andersen)

86) O náufrago (Thomas Bernhard)

87) On the road (Jack Kerouak)

88) O Mahabharata

89) Finnegan's wake (James Joyce)

90) Guerra e paz (Tolstói)
- Vídeo no TLT (Diário de leitura "Lendo Guerra e paz")

91) As viagens de Guliver (Jonathan Swift) 

92) Folhas de relva (Walt Whitman)

93) Contos maravilhosos, infantis e domésticos (Irmãos Grimm)

94) A vida e as opiniões do cavaleiro Tristam Shandy (Laurence Sterne)

95) O apanhador no campo de centeio (J. D. Salinger)
- Vídeo no TLT

96) Canções da inocência e Canções da experiência ( William Blake)

97) O paraíso perdido (John Milton)
- Playlist de leitra no TLT (Projeto de leitura conjunta)

98) O homem sem qualidades (Robert Musil)

Episódios de 2016:

Viagens na minha terra (Almeida Garret)
- Vídeo no TLT

- Anjo negro (Nelson Rodrigues)

- Vidas secas (Graciliano Ramos)
- - Vídeo no TLT

- O cortiço (Aluísio Azevedo)
- - Vídeo no TLT

- A cidade e as serras (Eça de Queirós)
- - Vídeo no TLT

- Diálogo sobre a Conversão do gentio (Manuel da Nóbrega)


17/08/2022 Total de livros lidos E resenhados no TLT até o momento: 56


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