CONTO #30: William Wilson (Edgar allan Poe)

           
        
           Um dos melhores contos já escritos.
           Duvida?
           Está em domínio público, aproveite para tirar a prova.
           E deve ser lido antes de sua primeira incursão pela Trilogia de Nova York, de Paul Auster (para entender, veja o vídeo clicando no link).
           Publicado pela primeira vez em 1839, William Wilson tem como tema principal o dopplegänger, ou seja: o duplo. O outro, ele mesmo. Ou não. Leia o conto. 
           A história toda se desenvolve no limiar entre a imaginação e a realidade.
          Logo nos primeiros parágrafos, o narrador, e também o nosso protagonista, nos deixa claro que ele faz parte de uma estirpe de sonhadores ( Aqueles que sonham de dia...), de pessoas com a imaginação muito fértil. E, estando ele na hora da morte, resolve contar, como quem passa a limpo  ou revê a vida antes de expirar, tudo o que o levou a estar ali, naquele momento.
       O narrador, William Wilson, se demora recriando o ambiente por onde passara os anos da infância (o internato) detalhadamente, até passar para as lembranças de seus professores, colegas, e - William Wilson. Não ele mesmo, o outro. O aluno novo que além de ser seu homônimo, seu rival, aquele que o humilha e deve ser humilhado de volta, o garoto de mesma altura e feições tão semelhantes que chega a ser tomado por seu irmão gêmeo, que além de tudo compartilha a mesma data de nascimento.
           Estranho, não? 
           Como todo bom dopplegänger.
      Temos um salto no tempo. William Wilson, ele mesmo, o narrador, já é um universitário arrogante, beberrão, jogador inveterado. O jovem indefeso cresce e se transforma basicamente em tudo aquilo que de início, conforme as primeiras páginas da narrativa correm, jamais imaginaríamos que ele fosse se tornar.
         Tudo vai bem nessa vidinha fanfarrona que ele leva, até receber a inesperada visita de quem? Quem?? QUEM???
          Ele mesmo.
          Não! O outro. O homônimo. O outro William Wilson.
          A partir de então, a história se desenrola de um jeito impressionante.
      

"Que seja permitido, no momento, apresentar-me como William Wilson. A página imaculada ora diante de mim não necessita ser manchada com meu verdadeiro nome. Este já constituiu por demais objeto do desprezo, do horror, do repúdio de minha estirpe. (...) Ah, o mais desamparado pária dentre os párias! Para o mundo não estás morto eternamente? para suas glórias, para suas flores, para suas douradas aspirações? e acaso uma nuvem densa, desoladora e infinita não paira por todo o sempre entre tuas esperanças e o céu?"
(...)
A morte se aproxima; e a sombra que a precede lançou uma influência suavizante sobre meu espírito. anseio, ao cruzar o vale sombrio, pela simpatia - quase ia dizendo pela piedade - de meus semelhantes. Eu de bom grado os faria crer que fui, em alguma medida, escravo de circunstâncias além do controle humano."
(p. 25)

"Em sua rivalidade poder-se-ia conjecturar que agia unicamente por um desejo caprichoso de estorvar, surpreender ou mortificar minha pessoa; embora houvesse ocasiões em que eu não conseguia deixar de observar, com um sentimento de admiração, humilhação e irritação, que temperava suas injúrias, seus insultos ou suas contradições com uma afetuosidade de modos que era decerto por demais inadequada e seguramente por demais indesejável. Esse comportamento singular eu só o podia conceber como derivando de uma rematada presunção dando-se ares vulgares de apoio condescendente e proteção."
(p. 31)

Onde encontrar William Wilson: Contos de Imaginação e Mistério



CONTO #29: A História de Rampsinitos (autor desconhecido)


          O conto que abre a coleção "Mar de Histórias", organizada e traduzida por Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai, idealizada e publicada pela primeira vez nos anos 40, veio da tradição oral do período longínquo que denominamos, sem lá muita precisão, como "Egito Antigo".
       A história dá conta do rei Rampsinitos, que resolve contratar um pedreiro para construir um gabinete para guardar guardar seu imenso tesouro.
       O pedreiro é eficiente, constrói o gabinete conforme descrito pelo rei, mas resolve construir, também, uma passagem secreta que só ele e seus filhos saberão a respeito.
          Antes de morrer, o pedreiro conta, então, sobre a passagem secreta a seus filhos, que passam a visitar o gabinete do rei e subtrair itens do tesouro sempre que possível.
           O rei percebe a diminuição de seus bens, e resolve colocar armadilhas pelo gabinete para pegar o ladrão.
     A história se desenrola como um conto policial: temos toda uma investigação do caso, envolvendo, inclusive, a filha o rei, que terá um papel no mínimo curioso para os dias de hoje.
          A leitura do conto vale mais como curiosidade, visto que historicamente, este seria o primeiro conto (enquanto "narrativa curta", com começo, meio e fim, enredo bem conduzido, etc) de que se tem notícia.

"Concluído o gabinete, o rei ali reuniu todos os seus tesouros,e, algum tempo depois, o pedreiro-arquiteto, sentindo aproximar-se o fim da vida, chamou os filhos, que eram dois, e declarou-lhes como se desempenhara de sua incumbência, e o artifício de que lançara mão construindo o gabinete do rei, a fim de que eles pudessem viver à larga."
(p. 31)

"Volveram os ladrões, segundo o costume, e um deles passou pelo gabinete; porém, mal se aproximou de um cofre, viu-se colhido pela armadilha. então, conhecendo a extensão do perigo, chamou depressa o irmão e mostrou-lhe o estado em que se encontrava, aconselhando que entrasse ali e lhe cortasse a cabeça, a fim de que ele não fosse reconhecido, e a sua perda não acarretasse a do irmão."
(p. 32)

CONTO #28: Nosso Pai (Leopoldo Alas, ou Clarín)

          

           Publicado em 1893, Nosso Pai, escrito por Leopoldo Alas, autor espanhol conhecido como Clarín, conta a história desse garoto, Juan de Dios, cuja figura angelical chamava a atenção de todos, inclusive dos padres da igreja que frequentava.
              Desde muito pequeno, o garoto já mostrava vocação para o sacerdócio, brincando de sermão em casa, improvisando um altar com os velhos móveis. Não deu outra: o garoto se torna padre.
              Os anos passam, e Juan de Dios que nunca duvidara de sua vocação, encontra uma moça da paróquia, tão bela e angelical quanto ele (a moça mais bonita de toda a cidade, diga-se). Descobre que a moça, de origem humilde, é comprometida com o filho fanfarrão de uma rica família da redondeza, e conforme a leitura segue, sabemos que esse rapaz só se compromete com ela por ser a moça mais bonita, e não exatamente por amá-la. Esse rapaz viaja frequentemente; passa meses fora, e numa dessas viagens, a garota, que sempre teve uma saúde frágil, adoece; cai de cama. Nosso padre é, então, chamado para sua extrema unção.
             O desenrolar da história e a explicação para seu título são, no mínimo, surpreendentes, e um tanto quanto chocantes (e NÃO, eles não são irmãos de sangue).
              Um dos contos mais tristes que eu já li, sem dúvida.


"Até o senhor Bispo, varão austero que andava pelo templo como que tremendo de santo temor a Deus, mais de uma vez se deteve ao passar rente ao menino, cuja cabeça dourada brilhava sobre o humilde terninho preto como um cálice sagrado entre os panos de enlutado altar; e sem poder resistir à tentação, o bom místico, vencedor de tantas, inclinava-se para beijar a testa daquela doce imagem dos anjos que como um gênio familiar frequentava o templo."
(p. 10)

"Ou eu observo mal, ou as crianças de hoje não costumam ter altares. Compadeço-me principalmente dos que ajam de ser poetas."
(p. 11)

"(...) para ele, ser mais que outros, valer mais que outros, era uma aparência, uma diabólica invenção; ninguém valia mais que ninguém; toda dignidade exterior, toda distinção, todo prêmio eram fogos-fátuos, inúteis, sem sentido. Emular glórias era tão vão, tão insosso, tão inútil quanto discutir. (...)"
(p.12/13)

"A menina já era uma jovem esbelta, não muito alta, magra, de uma elegância como que doentia, como uma deusa da febre. O amor por aquela mulher deveria vir de mistura com uma dulcíssima caridade. Era preciso amá-la também para cuidar dela."
(p. 16)

"Procurou um colega discreto, experiente. O colega não o compreendeu. Enxergou o pecado maior, justamente por ser romântico, platônico. "É que o diabo se disfarçava bem; mas lá andava o diabo.""
(p. 19)

""Eu não aspiro a nada; eu não posso ter ciúme; eu não quero o corpo dela, nem da alma nada além do que ela dá sem querer em cada olhar que por acaso encontra o meu. Meu carinho seria infame se não fosse assim.""
(p.21)



CONTO #27: A conversão dos judeus (Philip Roth)

          


          Publicado pela primeira vez em 1958 na revista literária Paris Review, A conversão dos judeus (The conversion of the jews) conta a história de Oscar, um garoto judeu pré adolescente de apelido Ozzie, que está sempre se metendo em confusão com seu rabino por ser muito curioso, questionador, e não aceitar quaisquer respostas dadas às suas perguntas facilmente.
          A confusão mais recente se dá por conta de uma aula sobre Jesus, na qual o rabino explica aos alunos o fato de que, para os católicos, Jesus não só havia realmente existido, em carne e osso, mas que também era: Deus. Ao passo que, explica o rabino, para os judeus, Jesus é, sim, uma figura histórica; mas, longe de ser divina. Isso tudo aguçando tremendamente a curiosidade de Ozzie, que chega ao ápice quando o rabino diz que Deus tudo pode; e dali algum tempo, diz que é um absurdo acreditar-se que a mãe de Jesus o concebeu por meio do espírito santo. Ele não se aguenta, e pergunta: "Se Deus tudo pode, ele poderia muito bem ter feito a mãe de Jesus tê-lo concebido "sem relações". Não? ". A mãe do garoto é chamada, mais uma vez para conversar com o rabino.
          Além de ser agredido pela mãe em decorrência de seu questionamento (pertinente, pelo menos em sua opinião), agredido (ou não) pelo rabino, que perde a paciência com o garoto novamente já no dia seguinte, Ozzie tem uma crise nervosa e vai parar do telhado da escola. O que gera uma grande comoção pelos arredores, culminando na chegada do corpo de bombeiros. 
          O desdobramento a partir de então é, no mínimo, curioso.
        Escrito em seus vinte e poucos anos, Philip Roth desenvolve nesse conto uma história Muito. Engraçada. Sem ser necessariamente engraçada, veja bem. Imagino que muitos religiosos possam se ofender com a forma como o autor trata seus dogmas. O bom humor do narrador ao contar as desventuras desse garoto que não entende o motivo de sua curiosidade incomodar tanto aos adultos ao seu redor, é impagável. 
          Recomendo fortemente a leitura.

""(...), eu fiz a pergunta sobre Deus, que se ele foi capaz de criar o céu e a terra em seis dias, e de fazer todos os animais e os peixes e a luz em seis dias - principalmente a luz, isso é que sempre me deixou intrigado, isso dele criar a luz...(...)
aí eu perguntei pro Binder (o rabino) se Ele foi capaz de fazer tudo isso em seis dias, e se ele pôde escolher os seis dias que Ele queria a partir do nada, então por que Ele não podia fazer uma mulher ter filho sem ter relações?""
(p. 137/138)

"Uma pergunta explodiu em seu cérebro. "Mas isso sou eu, mesmo?"Em se tratando de um garoto de treze anos que havia acabado de chamar seu líder religioso de filho-da-puta, e duas vezes, a pergunta procedia.
"Sou eu? Sou EU EU EU?! Tem que ser eu - mas será?"
É a pergunta que um ladrão certamente faz a si próprio na noite em que abre com um pé-de-cabra sua primeira janela, e diz-se que é também a pergunta que o noivo dirige a si próprio diante do altar."
(p.144)

"Todo mundo que já teve um gato no telhado sabe o que fazer para retirá-lo de lá. Basta ligar para o corpo de bombeiros, ou então para a telefonista e pedir a ela que chame os bombeiros. Logo em seguida, ouve-se um estrépito de freios, sirenes e homens berrando instruções. E logo o gato é retirado do telhado. 
Faz-se a mesma coisa para retirar um garoto do telhado."
(p.146)

Onde encontrar A conversão dos judeus: Adeus, Columbus

CONTO #26: Lavanderia Angel's (Lucia Berlin)

          

          Publicado em 2017 por aqui, em uma coletânea que teve como objetivo não só apresentar a autora para o público brasileiro, como tirá-la do esquecimento geral no qual aparentemente seus escritos caíram (o "Manual da Faxineira"), Lavanderia Angel's é o conto que abre o livro, portanto, nosso primeiro contato com Lucia Berlin.
            Com um estilo de escrita mais livre, sem seguir fórmulas consagradas para O Bom Conto, em primeira pessoa, acompanhamos as memórias da narradora sobre a lavanderia que costumava frequentar. Dentre a descrição de acontecimentos banais, e a descrição do lugar em si e das pessoas que lá frequentavam, a narradora escolhe nos contar sobre o índio velho e alto, de calça Levi's desbotada que costumava esperar sua roupa ficar pronta sentado, em silêncio observando as mãos da narradora. Mas essa não é a única figura digna de nota: ela nos conta sobre a velha senhora que a incumbe de verificar se ela morreu, caso não aparecesse ali, na lavanderia, na quinta-feira (fazendo com que trocasse sua usual manhã de segunda-feira pela de quinta, por um senso de obrigação que nem ela mesma consegue explicar), o dono da lavanderia dentre outros, mas o destaque fica para o velho índio, bêbado, e de costumes estranhos, com quem acaba desenvolvendo uma certa "amizade funcional"(aquele tipo de amizade travada em filas de banco, pontos de ônibus, etc.).

"O índio costumava ficar lá, bebericando Jim Beam e olhando para as minhas mãos. Não diretamente, mas pelo espelho pendurado na nossa frente, em cima das máquinas de lavar Speed Queen. No início, não me incomodou. (...) Mas depois eu comecei a me perguntar se ele tinha alguma tara por mãos. Aquilo me deixava nervosa, ele me vigiava enquanto eu fumava, assoava o nariz, folheava revistas de anos atrás."
(p. 8)

"Viajantes lavam roupa na Angel's. colchonetes sujos e cadeirinhas de bebê enferrujadas amarradas em capotas de Buicks velhos e amassados. Os reservatórios de óleo vaza, as bolsas de lona de água vazam. As máquinas de lavar vazam. Os homens ficam sentados dentro dos carros, sem camisa, e amassam latas de cerveja vazias."
(p.10)

"Eu tendo a fazer muitas generalizações infundadas sobre as pessoas, por exemplo, todos os negros devem gostar de Charlie Parker. Alemães são horríveis. todos os índios têm um senso de humor estranho, como o da minha mãe."
(p.12)


Onde encontrar Lavanderia Angel's: Manual da Faxineira (Lucia Berlin)
            
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