CONTO #30: William Wilson (Edgar allan Poe)

           
        
           Um dos melhores contos já escritos.
           Duvida?
           Está em domínio público, aproveite para tirar a prova.
           E deve ser lido antes de sua primeira incursão pela Trilogia de Nova York, de Paul Auster (para entender, veja o vídeo clicando no link).
           Publicado pela primeira vez em 1839, William Wilson tem como tema principal o dopplegänger, ou seja: o duplo. O outro, ele mesmo. Ou não. Leia o conto. 
           A história toda se desenvolve no limiar entre a imaginação e a realidade.
          Logo nos primeiros parágrafos, o narrador, e também o nosso protagonista, nos deixa claro que ele faz parte de uma estirpe de sonhadores ( Aqueles que sonham de dia...), de pessoas com a imaginação muito fértil. E, estando ele na hora da morte, resolve contar, como quem passa a limpo  ou revê a vida antes de expirar, tudo o que o levou a estar ali, naquele momento.
       O narrador, William Wilson, se demora recriando o ambiente por onde passara os anos da infância (o internato) detalhadamente, até passar para as lembranças de seus professores, colegas, e - William Wilson. Não ele mesmo, o outro. O aluno novo que além de ser seu homônimo, seu rival, aquele que o humilha e deve ser humilhado de volta, o garoto de mesma altura e feições tão semelhantes que chega a ser tomado por seu irmão gêmeo, que além de tudo compartilha a mesma data de nascimento.
           Estranho, não? 
           Como todo bom dopplegänger.
      Temos um salto no tempo. William Wilson, ele mesmo, o narrador, já é um universitário arrogante, beberrão, jogador inveterado. O jovem indefeso cresce e se transforma basicamente em tudo aquilo que de início, conforme as primeiras páginas da narrativa correm, jamais imaginaríamos que ele fosse se tornar.
         Tudo vai bem nessa vidinha fanfarrona que ele leva, até receber a inesperada visita de quem? Quem?? QUEM???
          Ele mesmo.
          Não! O outro. O homônimo. O outro William Wilson.
          A partir de então, a história se desenrola de um jeito impressionante.
      

"Que seja permitido, no momento, apresentar-me como William Wilson. A página imaculada ora diante de mim não necessita ser manchada com meu verdadeiro nome. Este já constituiu por demais objeto do desprezo, do horror, do repúdio de minha estirpe. (...) Ah, o mais desamparado pária dentre os párias! Para o mundo não estás morto eternamente? para suas glórias, para suas flores, para suas douradas aspirações? e acaso uma nuvem densa, desoladora e infinita não paira por todo o sempre entre tuas esperanças e o céu?"
(...)
A morte se aproxima; e a sombra que a precede lançou uma influência suavizante sobre meu espírito. anseio, ao cruzar o vale sombrio, pela simpatia - quase ia dizendo pela piedade - de meus semelhantes. Eu de bom grado os faria crer que fui, em alguma medida, escravo de circunstâncias além do controle humano."
(p. 25)

"Em sua rivalidade poder-se-ia conjecturar que agia unicamente por um desejo caprichoso de estorvar, surpreender ou mortificar minha pessoa; embora houvesse ocasiões em que eu não conseguia deixar de observar, com um sentimento de admiração, humilhação e irritação, que temperava suas injúrias, seus insultos ou suas contradições com uma afetuosidade de modos que era decerto por demais inadequada e seguramente por demais indesejável. Esse comportamento singular eu só o podia conceber como derivando de uma rematada presunção dando-se ares vulgares de apoio condescendente e proteção."
(p. 31)

Onde encontrar William Wilson: Contos de Imaginação e Mistério



CONTO #29: A História de Rampsinitos (autor desconhecido)


          O conto que abre a coleção "Mar de Histórias", organizada e traduzida por Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai, idealizada e publicada pela primeira vez nos anos 40, veio da tradição oral do período longínquo que denominamos, sem lá muita precisão, como "Egito Antigo".
       A história dá conta do rei Rampsinitos, que resolve contratar um pedreiro para construir um gabinete para guardar guardar seu imenso tesouro.
       O pedreiro é eficiente, constrói o gabinete conforme descrito pelo rei, mas resolve construir, também, uma passagem secreta que só ele e seus filhos saberão a respeito.
          Antes de morrer, o pedreiro conta, então, sobre a passagem secreta a seus filhos, que passam a visitar o gabinete do rei e subtrair itens do tesouro sempre que possível.
           O rei percebe a diminuição de seus bens, e resolve colocar armadilhas pelo gabinete para pegar o ladrão.
     A história se desenrola como um conto policial: temos toda uma investigação do caso, envolvendo, inclusive, a filha o rei, que terá um papel no mínimo curioso para os dias de hoje.
          A leitura do conto vale mais como curiosidade, visto que historicamente, este seria o primeiro conto (enquanto "narrativa curta", com começo, meio e fim, enredo bem conduzido, etc) de que se tem notícia.

"Concluído o gabinete, o rei ali reuniu todos os seus tesouros,e, algum tempo depois, o pedreiro-arquiteto, sentindo aproximar-se o fim da vida, chamou os filhos, que eram dois, e declarou-lhes como se desempenhara de sua incumbência, e o artifício de que lançara mão construindo o gabinete do rei, a fim de que eles pudessem viver à larga."
(p. 31)

"Volveram os ladrões, segundo o costume, e um deles passou pelo gabinete; porém, mal se aproximou de um cofre, viu-se colhido pela armadilha. então, conhecendo a extensão do perigo, chamou depressa o irmão e mostrou-lhe o estado em que se encontrava, aconselhando que entrasse ali e lhe cortasse a cabeça, a fim de que ele não fosse reconhecido, e a sua perda não acarretasse a do irmão."
(p. 32)

CONTO #28: Nosso Pai (Leopoldo Alas, ou Clarín)

          

           Publicado em 1893, Nosso Pai, escrito por Leopoldo Alas, autor espanhol conhecido como Clarín, conta a história desse garoto, Juan de Dios, cuja figura angelical chamava a atenção de todos, inclusive dos padres da igreja que frequentava.
              Desde muito pequeno, o garoto já mostrava vocação para o sacerdócio, brincando de sermão em casa, improvisando um altar com os velhos móveis. Não deu outra: o garoto se torna padre.
              Os anos passam, e Juan de Dios que nunca duvidara de sua vocação, encontra uma moça da paróquia, tão bela e angelical quanto ele (a moça mais bonita de toda a cidade, diga-se). Descobre que a moça, de origem humilde, é comprometida com o filho fanfarrão de uma rica família da redondeza, e conforme a leitura segue, sabemos que esse rapaz só se compromete com ela por ser a moça mais bonita, e não exatamente por amá-la. Esse rapaz viaja frequentemente; passa meses fora, e numa dessas viagens, a garota, que sempre teve uma saúde frágil, adoece; cai de cama. Nosso padre é, então, chamado para sua extrema unção.
             O desenrolar da história e a explicação para seu título são, no mínimo, surpreendentes, e um tanto quanto chocantes (e NÃO, eles não são irmãos de sangue).
              Um dos contos mais tristes que eu já li, sem dúvida.


"Até o senhor Bispo, varão austero que andava pelo templo como que tremendo de santo temor a Deus, mais de uma vez se deteve ao passar rente ao menino, cuja cabeça dourada brilhava sobre o humilde terninho preto como um cálice sagrado entre os panos de enlutado altar; e sem poder resistir à tentação, o bom místico, vencedor de tantas, inclinava-se para beijar a testa daquela doce imagem dos anjos que como um gênio familiar frequentava o templo."
(p. 10)

"Ou eu observo mal, ou as crianças de hoje não costumam ter altares. Compadeço-me principalmente dos que ajam de ser poetas."
(p. 11)

"(...) para ele, ser mais que outros, valer mais que outros, era uma aparência, uma diabólica invenção; ninguém valia mais que ninguém; toda dignidade exterior, toda distinção, todo prêmio eram fogos-fátuos, inúteis, sem sentido. Emular glórias era tão vão, tão insosso, tão inútil quanto discutir. (...)"
(p.12/13)

"A menina já era uma jovem esbelta, não muito alta, magra, de uma elegância como que doentia, como uma deusa da febre. O amor por aquela mulher deveria vir de mistura com uma dulcíssima caridade. Era preciso amá-la também para cuidar dela."
(p. 16)

"Procurou um colega discreto, experiente. O colega não o compreendeu. Enxergou o pecado maior, justamente por ser romântico, platônico. "É que o diabo se disfarçava bem; mas lá andava o diabo.""
(p. 19)

""Eu não aspiro a nada; eu não posso ter ciúme; eu não quero o corpo dela, nem da alma nada além do que ela dá sem querer em cada olhar que por acaso encontra o meu. Meu carinho seria infame se não fosse assim.""
(p.21)



CONTO #27: A conversão dos judeus (Philip Roth)

          


          Publicado pela primeira vez em 1958 na revista literária Paris Review, A conversão dos judeus (The conversion of the jews) conta a história de Oscar, um garoto judeu pré adolescente de apelido Ozzie, que está sempre se metendo em confusão com seu rabino por ser muito curioso, questionador, e não aceitar quaisquer respostas dadas às suas perguntas facilmente.
          A confusão mais recente se dá por conta de uma aula sobre Jesus, na qual o rabino explica aos alunos o fato de que, para os católicos, Jesus não só havia realmente existido, em carne e osso, mas que também era: Deus. Ao passo que, explica o rabino, para os judeus, Jesus é, sim, uma figura histórica; mas, longe de ser divina. Isso tudo aguçando tremendamente a curiosidade de Ozzie, que chega ao ápice quando o rabino diz que Deus tudo pode; e dali algum tempo, diz que é um absurdo acreditar-se que a mãe de Jesus o concebeu por meio do espírito santo. Ele não se aguenta, e pergunta: "Se Deus tudo pode, ele poderia muito bem ter feito a mãe de Jesus tê-lo concebido "sem relações". Não? ". A mãe do garoto é chamada, mais uma vez para conversar com o rabino.
          Além de ser agredido pela mãe em decorrência de seu questionamento (pertinente, pelo menos em sua opinião), agredido (ou não) pelo rabino, que perde a paciência com o garoto novamente já no dia seguinte, Ozzie tem uma crise nervosa e vai parar do telhado da escola. O que gera uma grande comoção pelos arredores, culminando na chegada do corpo de bombeiros. 
          O desdobramento a partir de então é, no mínimo, curioso.
        Escrito em seus vinte e poucos anos, Philip Roth desenvolve nesse conto uma história Muito. Engraçada. Sem ser necessariamente engraçada, veja bem. Imagino que muitos religiosos possam se ofender com a forma como o autor trata seus dogmas. O bom humor do narrador ao contar as desventuras desse garoto que não entende o motivo de sua curiosidade incomodar tanto aos adultos ao seu redor, é impagável. 
          Recomendo fortemente a leitura.

""(...), eu fiz a pergunta sobre Deus, que se ele foi capaz de criar o céu e a terra em seis dias, e de fazer todos os animais e os peixes e a luz em seis dias - principalmente a luz, isso é que sempre me deixou intrigado, isso dele criar a luz...(...)
aí eu perguntei pro Binder (o rabino) se Ele foi capaz de fazer tudo isso em seis dias, e se ele pôde escolher os seis dias que Ele queria a partir do nada, então por que Ele não podia fazer uma mulher ter filho sem ter relações?""
(p. 137/138)

"Uma pergunta explodiu em seu cérebro. "Mas isso sou eu, mesmo?"Em se tratando de um garoto de treze anos que havia acabado de chamar seu líder religioso de filho-da-puta, e duas vezes, a pergunta procedia.
"Sou eu? Sou EU EU EU?! Tem que ser eu - mas será?"
É a pergunta que um ladrão certamente faz a si próprio na noite em que abre com um pé-de-cabra sua primeira janela, e diz-se que é também a pergunta que o noivo dirige a si próprio diante do altar."
(p.144)

"Todo mundo que já teve um gato no telhado sabe o que fazer para retirá-lo de lá. Basta ligar para o corpo de bombeiros, ou então para a telefonista e pedir a ela que chame os bombeiros. Logo em seguida, ouve-se um estrépito de freios, sirenes e homens berrando instruções. E logo o gato é retirado do telhado. 
Faz-se a mesma coisa para retirar um garoto do telhado."
(p.146)

Onde encontrar A conversão dos judeus: Adeus, Columbus

CONTO #26: Lavanderia Angel's (Lucia Berlin)

          

          Publicado em 2017 por aqui, em uma coletânea que teve como objetivo não só apresentar a autora para o público brasileiro, como tirá-la do esquecimento geral no qual aparentemente seus escritos caíram (o "Manual da Faxineira"), Lavanderia Angel's é o conto que abre o livro, portanto, nosso primeiro contato com Lucia Berlin.
            Com um estilo de escrita mais livre, sem seguir fórmulas consagradas para O Bom Conto, em primeira pessoa, acompanhamos as memórias da narradora sobre a lavanderia que costumava frequentar. Dentre a descrição de acontecimentos banais, e a descrição do lugar em si e das pessoas que lá frequentavam, a narradora escolhe nos contar sobre o índio velho e alto, de calça Levi's desbotada que costumava esperar sua roupa ficar pronta sentado, em silêncio observando as mãos da narradora. Mas essa não é a única figura digna de nota: ela nos conta sobre a velha senhora que a incumbe de verificar se ela morreu, caso não aparecesse ali, na lavanderia, na quinta-feira (fazendo com que trocasse sua usual manhã de segunda-feira pela de quinta, por um senso de obrigação que nem ela mesma consegue explicar), o dono da lavanderia dentre outros, mas o destaque fica para o velho índio, bêbado, e de costumes estranhos, com quem acaba desenvolvendo uma certa "amizade funcional"(aquele tipo de amizade travada em filas de banco, pontos de ônibus, etc.).

"O índio costumava ficar lá, bebericando Jim Beam e olhando para as minhas mãos. Não diretamente, mas pelo espelho pendurado na nossa frente, em cima das máquinas de lavar Speed Queen. No início, não me incomodou. (...) Mas depois eu comecei a me perguntar se ele tinha alguma tara por mãos. Aquilo me deixava nervosa, ele me vigiava enquanto eu fumava, assoava o nariz, folheava revistas de anos atrás."
(p. 8)

"Viajantes lavam roupa na Angel's. colchonetes sujos e cadeirinhas de bebê enferrujadas amarradas em capotas de Buicks velhos e amassados. Os reservatórios de óleo vaza, as bolsas de lona de água vazam. As máquinas de lavar vazam. Os homens ficam sentados dentro dos carros, sem camisa, e amassam latas de cerveja vazias."
(p.10)

"Eu tendo a fazer muitas generalizações infundadas sobre as pessoas, por exemplo, todos os negros devem gostar de Charlie Parker. Alemães são horríveis. todos os índios têm um senso de humor estranho, como o da minha mãe."
(p.12)


Onde encontrar Lavanderia Angel's: Manual da Faxineira (Lucia Berlin)
            

CONTO #25: Man about town, ou Enquadrando o savoir-faire (O. Henry)


         

             
            Eis um conto sobre autoconhecimento.
          Publicado pela primeira vez em 1906, Man about town é contado por um narrador com uma dúvida terrível: quem seria o Man about town? Onde vive? Do que se alimenta? O que faz para se divertir?
       Nosso narrador, acostumado aos rótulos dados a determinados grupos de pessoas e seus estereótipos, se depara com esse rótulo que simplesmente não sabe definir - e isso o deixa extremamente incomodado. Não descansará até descobrir quem é o Man about town, "nem que tenha que varrer Nova York de Battery a Coney Island".  Portanto, sai pela cidade, sem destino definido, entrevistando as mais diversas pessoas que encontra pelo caminho, perguntando se conhecem, se já viram, se sabem onde encontrar um Man about town.
          Por vezes, composto em forma de entrevista, outras, trazendo algumas digressões sobre estereótipos batidos e bem conhecidos do narrador, o conto é escrito de forma leve, direta, irônica e divertida. O autor deixa o leitor curioso, também, para saber quem seria o bendito Man about town - e o final, rápido, sem enrolação, não deixa de ser surpreendente.

"Havia duas ou três coisas que eu queria saber. Não gosto de mistérios. Por isso comecei a investigar.
Demorei duas semanas para descobrir o que as mulheres carregam em suas malas de viagem. Então passei a perguntar por que um colchão é feito de duas partes. (...) O terceiro gole, a que eu tanto ansiava na fonte do conhecimento estava relacionado a um personagem conhecido como "Man about town"."
(p. 21)

"- Fico feliz que tenha tocado no assunto; já senti a influência maligna dessa figura noturna em nossa cidade, mas nunca pensei em analisá-la. Percebo agora que o seu tipo deveria ter sido classificado há muito tempo."
(p.  27)

"Deixei o hotel e caminhei pela Broadway. A busca pelo Man about town deu um agradável sopro de vida e interesse ao ar que eu respirava. Eu me sentia feliz por estar em uma cidade tão grande, complexa e diversificada. "
(p. 28)


Onde encontrar Man about town, ou Enquadrando o savoir-faire: Contos (O.Henry)

CONTO #24: Eveline (James Joyce)



          Publicado pela primeira vez em em um jornal local irlandês em 1904, mais tarde, em 1914 passou a fazer parte da coletânea de contos do autor, intitulada Dublinenses
          Eveline, uma jovem envolvida com um marinheiro que a convida a fugir e viver com ele, reflete sobre a vida enquanto observa a paisagem através de uma janela. Sua mãe, antes de morrer, fez a jovem prometer cuidar do pai e dos irmãos - um deles, o mais velho, já morreu, o outro vive viajando a trabalho; resta apenas o pai, que a maltrata (por ser a única mulher, talvez). Sua vida se resume ao convívio com esse pai pouco amoroso, ao seu trabalho como vendedora realizado sem vontade e seus encontros com o jovem marinheiro, que lhe oferece a fuga perfeita de uma existência sem cor.
          O conto gira em torno das ponderações de Eveline, os prós e os contras dessa escolha que precisa ser feita, e o medo da impossibilidade de se voltar atrás. Sua escolha não deixa de ser surpreendente.

"Havia concordado em partir, em deixar seu lar. Seria sensato? Tentou pesar os prós e os contras de sua decisão. Bem ou mal, tinha em casa abrigo e comida. vivia entre pessoas que sempre conhecera. Precisava, é claro, trabalhar pesado em casa e no emprego. Que diriam na loja ao saberem que fugira com um homem? Que era uma tola, talvez, e preencheriam a vaga publicando um anúncio no jornal."
(p. 18)

"Levantou-se num súbito impulso de terror. Fugir! Frank a salvaria. Iria lhe dar uma vida, talvez também amor. Queria viver. Por que haveria de ser infeliz? Tinha direito à felicidade. Frank ia envolvê-la em seus braços, protegê-la. Ele a salvaria."
(p. 21)

Onde encontrar Eveline: Dublinenses (James Joyce)

CONTO #23: Kótin, O Provedor e Platonida (Nikolai Leskov)

         


       Publicado pela primeira vez em 1867 como digressão e parte integrante da novela Os que esperam o borbulhar das águas: crônicas romanescas, e mais tarde reelaborado e publicado separadamente, Kótin, O Provedor e Platonida, apesar do título enganar num primeiro momento, nos conta a história de dois personagens principais (Kótin torna-se O Provedor), que sofrem desgostos terríveis, mas escolhem o caminho da virtude.
          Kótin (Konstantin Pizónski) fora criado como menina pela mãe, que num dado momento se vê obrigada a buscar refúgio num convento. Só bem mais tarde se descobre menino, e essa confusão sexual em nada mais parece interferir em sua vida, a não ser pelo "amor materno" que Kótin sentirá por duas orfãs que acaba adotando. Os três levam uma vida miserável, mas Kótin, que, conforme dito, escolhe o caminho da virtude, é reconhecido pelo povo como um grande homem, e chega a ser considerado indispensável em sua cidade.
          Já Platonida é uma mulher muito bonita, casada, e que mora na mesma casa com o cunhado e seu sogro. É assediada pelo cunhado, que aparentemente sente um amor genuíno pela esposa do irmão. Mais tarde, Platonida se verá vítima de abuso por parte do sogro, também, e dará um jeito de seguir seu caminho.
          As histórias de Platonida e Kótin se entrelaçarão nessa história contada com um quê de conto de fadas, por um narrador que nos mostra tantas vicissitudes da vida humana de forma bem humorada e por vezes, cômica.

"É bem sabido que nunca e a ninguém uma mulher é capaz de revelar simpatia mais generosa
e melhores serviços do que a quem, casualmente, torna-se testemunha de alguma fraqueza do seu coração. Platonida Andrêievna confirmou a verdade absoluta dessa afirmação(...)"
(p. 29)

"Pizónski talvez já devesse tomar cuidado para não despertar contra si a inveja e a maledicência, mas ele se comportava com quietude e retidão e, sem se ufanar dos próprios êxitos, não  despertava inveja de ninguém."
(p. 35)

Ë assim, Pizónski se ergueu, sem apadrinhamento e sem proteção, e era
ele próprio quem protegia aquilo que
deve ser protegido: a infância."
(p. 41)

Onde encontrar Kóyin, O Provedor e Platonida: A Fraude e Outras Histórias (Nikolai Leskov)



CONTO #22: Manhã de um senhor de terras (Tolstói)


          Publicado pela primeira vez em algum momento nos idos de 1850, Manhã de um senhor de terras conta a história de um jovem proprietário que resolve abandonar os estudos universitários para se dedicar às terras e ao bem estar dos mujiques que ali trabalham.
            Depois de mais de um ano dessa empreitada, o que temos aqui é a descrição dessa manhã em que, finalmente, o senhor de terras compreende aquilo que para os demais proprietários de terra, inclusive sua rica tia que tenta impedi-lo de largar os estudos e fazer uma coisa dessas: que os mujiques não querem ser ajudados; que, para eles, de certa forma, sua miséria é uma forma de honra; que muitos deles usam tudo o que recebem do senhor de terra para proveito próprio e não ajudam seus familiares; que muitos deles passaram a fazer corpo mole depois de conhecerem pessoalmente esse bondoso senhor de terras que os visitava, se interessava e lhes entregava o que era necessário; enfim, que eles respeitavam bem mais ao senhor de terras anterior (seu pai), pois ele nunca visitava as terras e seus mujiques, o que os levava a serem os únicos responsáveis por sua subsistência.

"O jovem senhor de terras, como ele havia escrito para a tia, tinha definido regras de conduta
em relação à sua propriedade, e toda a sua vida e seus afazeres estavam distribuídos em horas, dias e meses. O domingo era destinado a ouvir reclamações e pedidos dos servos domésticos e dos mujiques, a visitar os camponeses pobres da propriedade e a lhes prestar ajuda."
(p.515)

"Já faz mais de um ano que procuro a felicidade neste caminho, e o que encontrei? Na verdade às vezes sinto que posso ficar satisfeito comigo mesmo; mas é uma espécie de satisfação seca, racional. MAs não, no fundo estou insatisfeito comigo mesmo! Estou insatisfeito porque aqui não conheci a felicidade, mas eu desejo ardentemente, a felicidade. Não experimentei os prazeres e até me distanciei de tudo o que dá prazer. Para quê? Por que? A quem isso traz alívio? A tia escreveu a verdade, quando disse que é mais fácil encontrar a felicidade para si do que dá-la aos outros?
Por acaso meus mujiques ficaram mais ricos? Adquiriram educação ou se desenvolveram moralmente? Nem um pouco. Nada melhorou para eles, e para mim, a cada dia fico mais penoso. Se eu visse algum suceso em meus projetos, se eu visse gratidão..."
(p. 581)

Onde encontrar Manhã de um senhor de terras: Contos Completos de Tolstói

CONTO #21: Cell One (Cela #1*) – Chimamanda Ngozi Adichie


                       Publicado pela primeira vez na revista The New Yorker, em 2007, Cell One (Cela #1) aparece dois anos depois da coletânea de contos da autora, The Thing Around Your Neck. Essa é a história de uma família composta pelo pai, professor universitário, a mãe dona de casa, a filha fantasma narradora e o irmão, que apesar da vida boa proporcionada pelos pais, resolve entrar para uma gangue.
                       O conto já começa nos mostrando o dia em que os pais e a menina chegam em casa e a encontram revirada, as joias da mãe roubadas. Num primeiro momento a família atribui aquilo à onda recente de criminalidade na vizinhança. A narradora sabe desde o início que o responsável era o próprio irmão; os pais, custam a acreditar (primogênito, bem-criado, mimado pela mãe; como pode?).
                       Certo dia, o rapaz se envolve em uma confusão seguida de tiroteio em um bar; alguém morre e ele vai preso. Todos temem a possibilidade de o rapaz parar na “Cela #1”, lugar mais temido do presídio, de onde dificilmente se sai vivo.
                   A narradora nos conta de forma crua sobre esses eventos familiares, o sacrifício que os pais fazem para manter as visitas diárias ao presídio distante, as falhas do sistema carcerário nigeriano, o abuso das autoridades, as mudanças (?) pelas quais o irmão passa no presídio.

*OBS: no momento em que escrevo esta postagem, o livro de contos da Chimamanda ainda não tinha publicação no Brasil; a tradução do título do conto e dos trechos a seguir é livre, feita por mim; os trechos a seguir não trazem o número das páginas, pois o conto foi lido em ebook:

            “Era a época dos roubos em nosso campus tranquilo. Garotos que cresceram assistindo a “Vila Sésamo”, lendo Enid Blyton, comendo sucrilhos no café da manhã, e frequentando a escola de aplicação da universidade em sandálias de couro marrom bem cuidadas, estavam cortando as redes anti mosquito das janelas dos vizinhos, quebrando as persianas, e invadindo as casas para roubar aparelhos de TV e vídeo cassete. Nós conhecíamos os ladrões. Mesmo assim, quando os professores se encontravam no clube de funcionários ou na igreja, ou numa reunião de docentes, eram cuidadosos ao comentar baixinho sobre a horda que saía da cidade para roubar seu sagrado campus.”

“”Ei! Madame, por que a senhora gastou sua pele clara com o garoto e deixou a menina tão escura? O que o garoto está fazendo com toda essa beleza?” E minha mãe ria tímida, como se sentisse uma responsabilidade maliciosa pela aparência do Nnamabia.”

“Na segunda semana, disse a meus pais que não fossemos visitar Nnamabia. Não sabíamos por quanto tempo teríamos que fazer aquilo, e a gasolina era cara demais para se dirigir por três horas, todos os dias, e não seria ruim para o Nnamabia se virar sozinho por um dia.”

Não é minha Chimamanda preferida, mas vale a leitura.


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Onde encontrar The thing around your neck, em pré-venda em português: No Seu Pescoço

CONTO #20: O Pirotécnico Zacarias (Murilo Rubião)


          Publicado pela primeira vez em 1974, O pirotécnico Zacarias é um conto difícil de se classificar: fantástico? De mistério? Estranho? A saber: O autor aqui nos conta a história de um morto-vivo. Em primeira pessoa. Sim, o narrador morreu, e é ele quem nos conta suas mazelas. 
           Logo no início, o narrador nos conta sobre a estranheza que sua "morte" (ou não) anda causando aos seus conhecidos, visto que alguns ainda acham que ele está vivo (uma vez que "o morto tinha apenas alguma semelhança comigo", diz o narrador); ora, se esse que anda e fala é parecido com o suposto morto, logo, ele não morreu.
            Mas, ele morreu. É verdade. E a gente até sabe como aconteceu. No meio da noite, foi atropelado por um carro dirigido por um jovem que levava seus amigos para a farra. Enquanto eles confabulam o que fazer com o morto (jogá-lo de um precipício? levá-lo para um cemitério?), o morto resolve participar dessa decisão, claro. Como não? Um dos jovens desmaia, e os outros resolvem emprestar as roupas dele para o morto, e levá-lo, também à farra.
              E é assim que essa história se desenrola; o morto fazendo amizade com quem o matou (?), indo para a farra, e vivendo sua vida sem que os outros saibam que ele morreu (?).
               Bizarro define. Mas é divertidíssimo.

               Aproveito para agradecer novamente à Gléssia pelo livro!  \o/

"Discutiram em seguida outras soluções e, por fim, consideraram que me lançar ao precipício,
um fundo precipício, que margeava a estrada, limpar o chão manchado de sangue,
lavar cuidadosamente o carro, quando chegassem a casa, seria o alvitre mais adequado
ao caso e o que melhor conviria a possíveis complicações com a polícia, sempre ávida de achar
mistério onde nada existe de misterioso.

Mas aquele seria um dos poucos desfechos que não me interessavam. Ficar jogado
em um buraco, no meio de pedras e ervas, tornava-se para mim uma ideia insuportável. E ainda:
o meu corpo poderia, ao rolar pelo barranco abaixo, ficar escondido entre a vegetação,
terra e pedregulho. Se tal acontecesse, jamais seria descoberto no seu improvisado túmulo
e o meu nome não ocuparia as manchetes dos jornais."
(p. 17)

Onde encontrar O Pirotécnico Zacarias: Obra completa, Murilo Rubião


PS: esse conto vai além do seu plot; há de se prestar atenção, por exemplo, ao fato de o morto-vivo ser um pirotécnico; a questão da explosão de cores no momento de sua "passagem"; a cor branca sendo mencionada em diversos momentos no conto, e por aí vai.



NOVELA #1: O negro de Pedro, o Grande (Aleksandr Púchkin)



          A diferença entre "conto" e "novela" às vezes é tênue (e a confusão é frequente): há de se prestar atenção à forma do texto, ao tamanho (se é curto, é conto; se é longo, é romance; se não é longo, nem curto, é novela), ao desenvolvimento das personagens, ao efeito no leitor, etc, etc...
          Publicado em 1837, O negro de Pedro, o Grande (Arap Petra Velikogo) é o que se pode chamar de novela inacabada; aparentemente, a intenção do autor era a de escrever uma novela sobre seu trisavô que foi comprado de um sultão, dado de presente ao czar, e tornara-se o seu preferido. Bem educado na França, militar bem sucedido (participou da Guerra de Sucessão Espanhola), querido pela maioria (a não ser por aqueles que consideravam "estranho", digamos assim, receber um negro, mesmo sendo o preferido do czar, em seus soirées), acaba se envolvendo romanticamente com uma duquesa, com quem tem um filho; volta para a Rússia, atendendo ao chamado de Pedro, o que acaba sendo conveniente, pois é necessário evitar escândalos. E por aí vai a novela, até o encerramento abrupto, que deixa o leitor indignado por não mais nada para se ler da história... 

"O aparecimento de Ibraim, a sua boa apresentação, a cultura e inteligência inata despertaram em Paris a atenção geral. Todas as senhoras queriam ver em sua casa Le nègre do tzar e disputavam-no furiosamente. O regente convidava-o muitas vezes para as suas alegres noitadas: ele tomava parte em jantares animados pela mocidade de Arouet (Voltaire) e pela velhice de Chaulieu, pela prosa de Montesquieu e Fontenelle; não perdia um baile, uma festa, uma estreia, e entregava-se ao turbilhão geral com todo o ardor da sua idade e da sua raça."
(p.21)

"A doce atenção das mulheres, que é quase o único fito dos nossos esforços, não somente não lhe alegrava o coração, mas fazia-o até vibrar de indignação e amargura. Sentia que era para elas uma espécie de bicho raro, uma criatura diferente, estranha ao mundo, para o qual fora transportada casualmente e com o qual nada tinha em comum."
(p.22)

"(...) confesso que as assembleias não são igualmente do meu agrado: a qualquer momento, pode-se tropeçar em um bêbado, ou ainda ser embriagado para divertimento de todos. É preciso tomar muito cuidado para que um peralta não faça qualquer travessura com a nossa filha; e a mocidade de hoje em dia está muito mimada, é um verdadeiro despropósito."
(p.44)

"De todos os jovens educados no estrangeiro (que Deus me perdoe!), o negro do czar é quem tem mais jeito de gente."
(p.45)



Onde encontrar O negro de Pedro, o Grande: A dama de espadas - Prosa e Poemas


CONTO #19: Linda, uma história horrível (Caio Fernando Abreu)


          Publicado em 1988 e parte integrante do livro "Os dragões não conhecem o paraíso", Linda, uma história horrível conta a história desse filho, que já não via a mãe há anos, indo visitá-la sem aviso (a mãe não tem telefone, eis a desculpa). 
          O conto que já traz em sua epígrafe um trecho de Só as mães são felizes, de Cazuza (Você nunca ouviu falar em maldição, nunca viu um milagre, nunca chorou sozinha num banheiro público, nem nunca quis ver a face de Deus.), transmite um desconforto terrível, a ponto de fazer o leitor desejar terminar logo a leitura para acabar logo com aquilo. Mas não me entenda mal: é um excelente conto. O desconforto se dá quando percebemos que a mãe não está exatamente feliz em rever o filho (preferia que ele tivesse avisado antes), e o filho que está ali por precisar de seu porto seguro, se vê de tal forma desconcertado, que já quer ir embora dali depois de cinco minutos; a partir daí é ladeira abaixo até que as coisas comecem a entrar nos eixos. Mas até lá, o leitor sofre com a incapacidade do filho de desabafar com essa mãe, que não entenderia sua homossexualidade, que não entenderia o problema maior que o levou a buscá-la (AIDS - em que grau de avanço da doença as manchas tomam conta do corpo do acometido? Não sei, mas é nesse pé em que o filho está.).
             E Linda?
         Linda é a cadela de estimação da mãe. Tão envelhecida e decaída quanto sua dona (e seu filho?), traz no corpo manchas de um misto de senilidade e sarna; e é quando essas manchas são notadas pelo filho que o autor puxa o nosso tapete e caímos ao chão em posição fetal chorando convulsivamente.
             A falta de comunicação, o choque de gerações, a incompreensão e o isolamento para evitar a fadiga são temas desse conto.

"Tu não avisou que vinha - ela resmungou no seu velho jeito azedo, que antigamente ele
não compreendera. Mas agora, tantos anos depois, aprendera a traduzir como
que-saudade, seja-bem-vindo, que-bom-ver-você ou qualquer coisa assim. Mais carinhosa, embora inábil."
(p.10)

"De repente, então, enquanto nem ele nem ela diziam nada, quis fugir.
Como se volta uma fita num videocassete, de costas, apanhar a mala, atravessar a sala, o corredor de entrada, ultrapassar o caminho de pedras do jardim, sair novamente para a ruazinha de casas quase todas brancas. 
Até algum táxi, o aeroporto, para outra cidade, longe de Passo de Guanxuma, até a outra vida de onde vinha. 
Anônima, sem laços nem passado. 
Para sempre, para nunca mais. 
Até a morte de qualquer um dos dois, teve medo. 
E desejou.
Alívio, vergonha."
(p. 12)





       
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