CONTO #11: Ar frio (H. P. Lovecraft)


          Publicado em 1928, Ar frio (Cool air) é um conto de horror em que se nota claramente a influência de Edgar Allan Poe em H. P. Lovecraft. É praticamente a história d'O estranho caso do Sr. Valdemar contada de outro jeito. Ok, posso estar exagerando, mas o desfecho dos dois contos (sem dar spoilers) é praticamente o mesmo, e o elemento gore disgusting está mais amenizado neste conto; ouso dizer que HPL "pegou leve".
          Bem, aqui nós temos um protagonista se mudando para uma pensão, e conhecendo, da pior forma possível, seu vizinho do andar de cima: além do forte cheiro de amônia que aquele apartamento exala, o morador, que é um médico, acaba ajudando o protagonista e narrador da história a se recuperar de um ataque cardíaco. Depois disso, sente que deve algo ao vizinho por ter-lhe salvo a vida. Então, passa a visitá-lo, fazer pequenos favores, como ir ao mercado, etc. Nota que o apartamento está sempre muito frio; a temperatura é mantida por volta dos 12 graus, aparentemente devido a algum problema de saúde estranho do velho médico. Daí pra frente, a gente segue a história descobrindo detalhes sobre a vida desse estranho médico, sua condição, e o que acontece quando o equipamento de refrigeração do apartamento para de funcionar.

"É um erro achar que o horror está necessariamente associado à escuridão, ao silêncio,
à solidão."
(p.55)

"(...) assegurou-me, com uma voz modulada, ainda que oca e sem timbre, que era o mais
ferrenho inimigo da morte e que havia gasto toda a fortuna e perdido todos os amigos ao longo
da vida de experimentos devotados à sua derrota e aniquilação."
(p. 58)


Onde encontrar Ar frio: Os melhores contos de H. P. Lovecraft


CONTO #10: Sebastopol em agosto de 1855 (Tolstói)


          Publicado em 1855 junto com outros dois contos (Sebastopol em dezembro, e Sebastopol em maio), Sebastopol em agosto de 1855 é o último conto dessa trilogia na qual Tolstói compartilha com o leitor suas experiências como soldado durante o cerco de Sebastopol, uma cidade da Crimeia. Um mês depois, o combate em Sebastopol chegaria ao fim. 
          Aqui, Toltói nos conta a história desses dois irmãos que se reencontram a caminho de Sebastopol (que nenhum dos dois sabe exatamente onde fica), onde servirão. Durante esse encontro, conhecemos um pouco sua história familiar, entendemos seu relacionamento, inclusive ficamos sabendo o que o irmão mais novo esperava que acontecesse na guerra junto com seu irmão; um dos momentos mais interessantes do conto, aliás, em que ele imagina as atitudes heroicas que teria em batalha, e como morreria heroicamente após vingar a morte do irmão mais velho que tombaria em campo. Mal sabe ele...
          Trata-se de um conto longo (quase 100 páginas), o que me leva a questionar se o critério para escolha dos contos dessa coletânea foi o de realmente separar contos e novelas e publicar somente os primeiros. Para mim, não só este como os demais contos de Sebastopol estariam mais para novela, mas, enfim...

"O oficial tinha sido ferido no dia 10 de maio por um estilhaço na cabeça, que continuava enfaixada, e agora, sentindo-se perfeitamente curado, havia uma semana, voltava do hospital para o regimento, que devia estar por ali - mas podia estar em Sebastopol, em Siévernaia ou em Inkerman, até agora ele não tinha conseguido saber ao certo."
(p.248)

"Os jovens oficiais, como concluiu logo ao primeiro olhar, tinham acabado de sair da escola de cadetes lhe agradaram, sobretudo porque o fizeram lembrar que o irmão, que também terminara a escola de cadetes, dali a alguns dias seria incorporado a uma das baterias de Sebastopol."
(p. 256)

"(...) Como não sente dentro de si as forças do mérito interior para inspirar respeito, o superior, por instinto, teme a proximidade dos subordinados e tenta, mediante manifestações exteriores de importância, afastar de si toda crítica. Os subordinados, vendo apenas esse lado exterior, ofensivo para eles, já não esperam, não raro injustamente, nada de bom por parte do superior."
(p. 300)

No dia seguinte, talvez no mesmo dia, todas essas pessoas seguirão com alegria e orgulho ao encontro da morte e morrerão com firmeza e tranquilidade; mas o único consolo da vida naquelas condições, que causam horror até à mais fria imaginação, na ausência de tudo que é humano e sem esperança de alguma saída, o único consolo é o esquecimento, a aniquilação da consciência. No fundo da alma de cada um, repousa aquela centelha nobre que faz dele um herói; mas essa centelha se cansa de arder com força - chega o minuto fatal e então, ela se inflama e ilumina os grandes feitos."
(p.306)

Onde encontrar Sebastopol em agosto de 1855: Contos Completos Liev Tolstói 

CONTO #9: O Caso do Sr. Valdemar (Edgar Allan Poe)



          Publicado em 1845, O caso do Sr Valdemar, ou O estranho caso do Sr. Valdemar, ou ainda A verdade no caso do Sr. Valdemar - depende da edição/tradução que você tiver em mãos - (The facts in the case of M. Valdemar), conta a história desse estranho "médico" que pratica o mesmerismo. Um tipo de hipnose com "magnetismo curativo", considerado uma grande fraude do século XVIII. Mas quem está contando? É um conto de Poe, é realismo fantástico. E ele pode. Enfim, temos esse doutor, especialista em mesmerismo, que logo no início do conto deixa claro o fato de essa prática ainda estar em estudo e, mesmo assim, já obter excelentes resultados. Ocorre que, ainda falta tentar usá-la de uma maneira singular. A saber: no ato da morte. Será possível conversar com um falecido após sua desencarnação, visto que o corpo e a alma estarão hipnotizados, ou seja, a mercê do hipnotizador? É este o experimento a ser feito com o consentimento do Sr. Valdemar, que já está nas últimas desde o início do conto.
          Neste conto temos Poe arabesco, grotesco, bem gore, mesmo. É um dos contos mais Zé do Caixão que escreveu. Daqueles em que, para você aí, amigo, que assim como eu também tem reações físicas a determinadas leituras, vai se pegar segurando a respiração para não sentir o cheiro descrito, ou semicerrando os olhos quando certas coisas grotescas, de verdade, aparecerem na história.

"Em duas ou três ocasiões, eu o fizera dormir com pouco esforço, mas ficara desapontado
quanto aos outros resultados que sua particular constituição me levava a prever.
Em período algum sua vontade ficava inteira ou positivamente submetida à minha influência e, no que toca a clarividência, nada eu podia realizar com ele que me servisse de base. Atribuí sempre meu insucesso, nesse ponto, ao seu precário estado de saúde.
Certos meses, antes de conhecê-lo, seus médicos o haviam declarado tísico, sem qualquer dúvida. E, na verdade, tinha ele o hábito de falar sobre a aproximação de seu fim como de uma questão que não devia ser lastimada nem se podia evitar."
(p. 224)

"- Sr. Valdemar... - disse eu - está adormecido?
Ele não deu resposta, mas percebi um tremor em torno dos lábios e por isso fui levado a repetir a pergunta várias vezes. A terceira repetição, todo seu corpo se agitou em um leve calafrio; as pestanas abriram-se, permitindo que se visse a faixa branca do olho; os lábios moveram-se lentamente e dentre eles, num sussurro, brotaram as palavras:
- Sim,... estou adormecido agora. Não me desperte! Deixe-me morrer assim!
Apalpei-lhe então os membros e achei-os tão rijos como dentes: o baço direito obedecia ainda à direção de minha mão. Interroguei de novo o magnetizado:
- Sente ainda dor no peito, Sr. Valdemar?
A resposta agora foi imediata, mas ainda menos audível do que antes:
- Dor nenhuma... Estou morrendo!"
(p. 228)

"Suponho que ninguém do grupo ali presente estava desacostumado aos horrores dos leitos mortuários; mas tão inconcebivelmente horrenda era a aparência do Sr. Valdemar naquele instante que houve um geral recuo das proximidades da cama."
(p. 229)

Absolutamente bizarro.

Onde encontrar O caso do Sr. Valdemar: Contos de Imaginação e Mistério (essa edição de Contos de Terror, de Mistério e de Morte é dos anos 90, portanto, difícil de encontrar)

CONTO #8: O Amor e a Loucura (Jean de La Fontaine)


          Publicado em algum momento entre 1664 e 1674 (período em que quase toda sua obra fora produzida), O Amor e a Loucura (L'amour e la Folie) é um microconto que nos mostra a interpretação de La Fontaine, autor de grandes fábulas, para explicar a cegueira do amor a partir de seu relacionamento estreito com  loucura. É um conto singelo, cuja leitura vai te levar menos de dois minutos, e é muito fácil de encontrar online.

"No amor tudo é mistério: suas flechas e sua aljava, sua chama e sua infância eterna.
Mas por que o amor é cego?"
(p. 17)

Onde encontrar O Amor e a Loucura: Os melhores contos de loucura (organização de Flávio Moreira da Costa (livro esgotado, também, desculpe; no link, você encontra o ISBN do livro que o ajudará a encontrá-lo em sebos :)

Pensamentos Randômicos #2

Esse calor, senhooooor… Para quê tudo isso?

Vejo a moça que eu acompanho no twitter, moradora do Rio Grande do Sul, reclamando (de barriga cheia * cof, cof *), do fato de estarmos em outubro, e ainda estar lá, usando casacos, e eu penso: Justiça. Nesse mundo. Não há.


***


Da janela do “quartinho” (apelido dado por mim ao cômodo onde mora o o computador, os filmes, a câmera, etc…), o que vejo:

O terraço gourmet do prédio vizinho.

‘Tamos aqui, no décimo terceiro andar, e esse prédio vizinho é mais baixo.

Da janela do quartinho é possível acompanhar os churrascos dessas pessoas bonitas, que gostam MUITO de carne.
Sério - praticamente todo fim de semana se grelha uma carninha ali.
Nunca devem ter ouvido aquela história de que X gramas de carne ingerida ficam uma semana apodrecendo no seu organismo até a digestão completa.
Porque, veja bem, eu ouvi isso
E jamais me recuperei.
(Lenda urbana? Talvez.)
(Como carne, mas não sou a maior fã da face da terra; teria dificuldade em interagir com essas pessoas do prédio vizinho.)


***


Recentemente criei vergonha na cara e fiz os pés.
Pela primeira vez.
Em 34 anos nessa indústria vital.
É.
Isso é digno de nota?
Sim.
Falei sobre isso nesse vídeo aqui.
E só queria dizer que, apesar do horror, O HORROR, em que se encontravam meus pés, marquei “mão e pé” pra semana seguinte (não sem antes mostrar a situação periclitante para a manicure, que, coitada, disse, “Naaaah, bobagem, a gente faz, sim, vai ficar bom”.
E me pediu para ficar uma semana sem comer açúcar.
O que a ingestão de açúcar tem a ver (se é que tem) com suas unhas?
Não sei.
'Tá muito quente para procurar no google.
Só sei que obedeci.

Ficou bom.

***


*  Toca o telefone *

- Alô.
- Boa tarde, eu gostaria de falar com a Gláucia? (Jamais entenderei o tom de pergunta nessas frases. Porque, veja bem, "Eu gostaria de falar com a Gláucia?" é uma pergunta que só você pode responder.)
- Eu também.
- Como?
- Vocês ligam 25 vezes por dia me perguntando sobre a Gláucia, e eu já falei milhões, MILHÕES de vezes que não existe essa pessoa, com esse nome, aqui, na minha residência. Eu também gostaria de falar com ela. Estou curiosa.
- Ah, obrigada. * desliga *

E tão certo quanto o sol, que há de brilhar (e fritar) amanhã, Gláucia será procurada de novo. 
No nosso telefone.


CONTO #7: A terceira renúncia (Gabriel Garcia Marquez)


          Publicado em algum lugar entre 1947 e 1955 (ano de publicação da coletânea de contos Ojos de Perro Azul), A terceira renúncia é um conto assustador. Simples assim. Sobre um rapaz, hoje com 25 anos de idade, mas que está morto desde os 7. Posso estar enganada, mas o garoto foi diagnosticado com febre tifoide e, desde então, vive em estado vegetativo dentro de seu ataúde. Continua crescendo e o crescimento aparente é o único fato que faz a mãe acreditar que seu filho ainda está vivo. O horror vem da descrição das sensações do garoto contadas por um narrador em terceira pessoa e que é o único que sabe o que se passa pela cabeça do morto. Desde a dor de cabeça insuportável causada por um ruído repetitivo, até o pavor pelos ratos que andam pela sala de madrugada e o medo de ser enterrado vivo.


"Assim era aquele ruído: interminável como o golpear de cabeça de um menino contra um muro de concreto. Como todos os golpes duros dados contra as coisas sólidas da natureza. Mas já não o atormentaria mais se pudesse cercá-lo, isolá-lo. Ir talhando contra a própria sombra a figura variável. E agarrá-lo. Apertá-lo, agora sim definitivamente; atirá-lo com todas as forças contra o pavimento e pisoteá-lo com ferocidade até quando não mais pudesse mexer-se verdadeiramente, até quando pudesse dizer, arquejante, que dera morte ao ruído que o atormentava, que o enlouquecia e que agora estava atirado ao chão como qualquer coisa comum, convertido em morto integral."
(p. 10)

"Sentira esse ruído "nas outras vezes", com a mesma insistência. Sentira, por exemplo, no dia em que morreu pela primeira vez. quando - à vista de um cadáver - percebeu que era seu próprio cadáver. Olhou-o e se apalpou. Sentia-se intangível, inespacial, inexistente. ele era verdadeiramente um cadáver, e já estava sentindo, sobre seu corpo jovem e doentio, a passagem da morte."
(p.11)

"- Senhora, seu menino tem uma enfermidade grave: está morto. Apesar disso, faremos todo o possível para conservar sua vida mais além da morte."
(p.12)

"Tinha satisfação materna de vê-lo. Assim mesmo, cuidou de evitar a presença de estranhos na casa. Afinal, era desagradável e misteriosa a existência de um morto, por longos anos, em uma residência."
(p.15)

"Um dia sentirá que se desmorona seu sólido esqueleto; e quando tratar de mencionar, de examinar cada um de seus membros, não os encontrará. Sentirá que não tem forma exata definida, e saberá resignadamente que perdeu sua perfeita autonomia de vinte e cinco anos e que se converteu num punhado de pó sem forma, sem definição geométrica."
p.17)

"Sabia agora que estava verdadeiramente morto, ou ao menos inapropriadamente vivo. Dava no mesmo."
(p.20)

Excepcional.

Onde encontrar A terceira renúncia: Olhos de cão azul (Gabriel Garcia Marquez)

CONTO #6: Nos banhos (A. P. Tchekhov)


          Publicado em duas partes, sendo a primeira apresentada nessa edição da foto de 1885, e a segunda parte de 1883, Nos banhos (se alguém souber o original em russo, por favor) é um conto muito engraçado sobre costumes russos no final do século XIX. Na primeira parte, a gente conhece esse barbeiro, funcionário de um banho [estilo banho romano, mesmo] que enquanto trabalha, fala mal da vida alheia e acaba confundindo um membro do clero com alguém de determinado grupo que ele repudia - por conta dos cabelos longos do homem. O barbeiro vai metendo os pés pelas mãos e vai causando aquela vergonha alheia em quem lê. Já na segunda parte temos a conversa entre clientes do banho; um deles contando as mazelas da vida com relação à filha que já teve pretendentes, mas ainda não se casou (e ele se culpa, porque afinal, ele é uma criatura muito dócil).

"- Existem diversos tipos de instrução... Há, naturalmente, gente instruída que atinge altos cargos, mas outros passam a vida toda como escriturários e, depois, não se tem mesmo com que enterrá-los. Gente assim não falta agora. Costuma vir aqui um desses... instruídos... trabalha nos correios... Sabe tudo, pode redigir sozinho os telegramas, mas lava-se sem sabão. Até dá pena olhar!
- Pobre, mas honesto! - veio da tábua superior uma voz rouca de baixo - Temos que nos orgulhar
de gente assim. A instrução, aliada à pobreza, testemunha altas qualidades de espírito. Ignorante!"
(p.16)

"- Não sou escritor, mas não se atreva a falar daquilo que não compreende. A Rússia já teve muitos escritores, que trouxeram grande proveito ao país e, por isso mesmo, devemos honrá-los, em vez de falar mal deles. estou me referindo a escritores tanto profanos como religiosos."
(p.17)

"- Mas, perdoar-te por quê?
(...)
- Por ter pensado que o senhor tem ideias na cabeça!"
(p. 19)

"- Não se casou porque deus não me dotou de gênio forte. Sou muito quieto e doce por natureza, e atualmente, não se consegue nada com doçura. Os noivos de agora são ferozes e deve-se agir de acordo."
(p. 19)

"Confesso que me agradava de modo especial. (O pretendente) ficou regateando comigo uns dois meses. Eu lhe oferecia oito mil, ele queria oito mil e quinhentos. Às vezes, a gente sentava-se para tomar chá, cada um bebia quinze copos, e continuava-se a regatear. Ofereci mais duzentos rublos, mas ele não concordou! Pois bem, acabamos por nos separar por causa de trezentos rublos. Indo embora, o coitado chorava... Amava muito a minha Dacha! Agora eu me xingo, pecador que sou, fico me xingando de verdade! Bastava eu dar aqueles trezentos, ou então assustá-lo, desmoralizá-lo em toda a cidade, levá-lo a um quartinho escuro e dar-lhe na cara."
(p. 23)

Divertidíssimo.


CONTO #5: O gerânio (Flannery O'Connor)


          Publicado em 1946, O gerânio (The geranium) é um daqueles contos em que, ao iniciar a leitura, você acha que sabe para onde a autora o está levando, MAS aos poucos você vai percebendo que a história vai tomando um rumo completamente diferente. De início a gente vai conhecendo paulatinamente o senhor Dudley, que morava em uma pensão desde a morte da esposa, e que, um belo dia, resolve aceitar o convite da filha para ir morar com ela e sua família. Parecia uma boa ideia - o senhorzinho queria mesmo conhecer a Nova Iorque que assistia nos filmes. Ela prometeu que ele teria seu próprio quarto e ele deve ter imaginado que seria deixado em paz, mas logo a gente vai descobrindo que não era bem assim. Nova Iorque não era como nos filmes e Dudley dividiria o quarto com o neto de dezesseis anos, com quem não conversava. A filha, que achava que o pai precisava se sentir ocupado, lhe pedia favores repetidamente. Vem a saudade da pensão no sul. Dos amigos. Da paisagem que incluía um rio e gerânios. Um vizinho de janela também tem um gerânio. E o senhorzinho sabe de cor o horário em que a planta é colocada para tomar sol na janela todos os dias. Até aí, parece que o conto é sobre esse senhor de idade, suas saudades, sua melancolia. Então começamos a notar uma certa inclinação racista nesse senhorzinho e que parecia tão simpático. Seu racismo com relação aos novos vizinhos negros chega a transtorná-lo fisicamente. E o que parecia ser um conto sobre a melancolia da velhice, passa a ser um conto sobre racismo - mas aquele racismo arraigado, de quem viveu a vida toda onde "negro tem o seu lugar"; que não aceita que a filha se submeta a viver em um prédio onde negros vivam como ela vive, ou seja, um racismo incurável.

"O gerânio que punham na janela lembrava-o de um garoto de sua terra, um tal de Grisby, que
teve pólio e era deixado no sol, todas as manhãs, para ficar piscando os olhos na cadeira de rodas."
(p.9)

"Mas é que havia por dentro aquela coisa, o desejo que o empurrava para conhecer Nova York (...)
Uma grande cidade era um lugar importante, e a tal coisa dentro dele de repente subiu e escapuliu
e o venceu. Na cidade vista num filme haveria um espaço para ele! Era um lugar importante, 
lá ele teria o seu quarto e então disse que sim."
(p.10)

"Mas às vezes, quando somente a filha e o velho estavam no apartamento, ela era capaz
de sentar-se para bater um papo com ele. Primeiro ela precisava pensar no que teria
teria a dizer, e que em geral lhe escapava antes do momento que considerava oportuno
para se levantar e ir fazer outra coisa. Ele assim tinha de falar qualquer frase
e se esforçava para não repetir o que antes já havia dito. Da segunda vez, ela nunca escutava. 
tinha tomado providências para que o pai passasse os últimos anos de vida com sua própria família, e não numa pensão decadente cheia de velhotas cujas cabeças já vacilavam. Estava cumprindo sua obrigação, ao contrário dos seus irmãos e irmãs, que disse nem queriam saber."
(p.13)

"E o negro perguntou:"O senhor é daqui?"
O velho Dudley, olhando para a porta, fez que não com a cabeça. Para o negro, até então não tinha olhado. Durante toda a subida nem sequer o olhou de fato."
(p.21)

"Havia um homem olhando para ele. Um homem, na janela do outro lado do beco, não tirava os olhos dele. O homem via o velho chorar. Quem estava onde devia estar o gerânio era um homem de camiseta que o via encher-se de lágrimas, à espera de ver sua garganta estourar. O velho Dudley o olhou de volta. Era o gerânio que devia estar lá."
(p.21)

Mais um conto de deixar no coração pesado.

Onde encontrar O Gerânio: F. O'Connor Contos completos





CONTO #4: Napoleão e o Espectro (Charlote Bronte)

          

          Publicado em 1833, Napoleão e o Espectro (Napoleon and the Spectre) é uma história de fantasma vitoriano clássica. Temos Napoleão se recolhendo. Assim que se encontra sozinho em seus aposentos, com as luzes apagadas, ele sente uma presença. Tudo começa com um farfalhar em seu travesseiro; dali a pouco uma risadinha; até que, enfim, surge o Espectro diante de seus olhos. Napoleão o ameaça com sua espada, mas, ora bolas, é um espectro! E não está para brincadeiras! Ordena que o imperador o siga, e, bem, não vou contar para onde o Espectro leva Napoleão, mas é um conto "delicinha" de se ler. Mais uma vez, temos uma história de fantasma contada com humor (vide O pé da múmia), o que me leva a questionar se essas histórias não seriam contadas, assim, dessa forma engraçadinha, para quebrar a tensão do obscuro; ou, talvez, estivessem zombando do espiritismo vigente na era vitoriana. Who knows...

"O imperador pulou do leito e, jogando às pressas sobre si um robe de chambre que estava
pendurado no espaldar de uma cadeira, encaminhou-se desafiador para o guarda-roupa
assombrado. Ao abrir a porta, algo farfalhou. Ele saltou para frente, espada na mão. Não 
apareceu ninguém, nem mesmo uma substância qualquer, e o farfalhar - isso ficou 
patente - originara-se com a queda de um manto que fora pendurado num gancho na porta.
Meio envergonhado de si mesmo, ele voltou para a cama."
(p.11)


Onde encontrar Napoleão e o Espectro: O Grande Livro de Histórias de Fantasmas

CONTO #3: Por que não dançam? (Raymond Carver)


        Pense em um conto sem história. Isso mesmo.
     Publicado em 1978, "Por que não dançam?" (Why don`t you dance?) é um conto em que, basicamente, nada acontece. Mentira. Tem um subtexto, aí. E no fim das contas, "Por que não dançam?" é um conto sobre a pequenez da vida. Sobre a insignificância do que, aparentemente, não tem importância.
          Um narrador sucinto abre a história mostrando esse homem que, um belo dia, resolveu colocar toda a mobília de casa, no jardim. Não sabemos o motivo. Praticamente tudo está lá fora. Sabemos que aquilo foi premeditado porque ele comprou uma extensão para mostrar que os eletrônicos funcionam. O homem olha para os objetos sob uma nova perspectiva. E essa nova perspectiva é muito semelhante à antiga. Um casal jovem, passando de carro, resolve parar e ver quanto estão pedindo pela cama. E pela televisão. O homem os recebe bem. Vende seus objetos. Compartilha seu uísque com o casal. Ficam meio altos. E resolvem dançar, ali mesmo, no jardim. Vai-se o conto e ficam as perguntas: o que aconteceu com aquele homem? Onde está sua esposa (se é que ela existe - sabemos que a cama era dividida entre "o lado dele e o lado dela")? No fim das contas, nada disso importa - o conto é um recorte, um microcosmo. É literal e ao mesmo tempo diz muito nas entrelinhas.

"Na cozinha, ele serviu mais um drinque e olhou para a mobília do quarto, no jardim da frente. O colchão estava nu e os lençóis, com listras coloridas, arrumados  ao lado de dois travesseiros 
sobre a cômoda. A não ser por isso, as coisas tinham a mesma cara de quando estavam 
dentro do quarto -  a mesinha e a luminária de leitura do seu lado da cama, a mesinha e 
a luminária do lado dela da cama. O lado dele, o lado dela. Ele ficou pensando nisso, enquanto bebia devagar o seu uísque."
(p.13)

"Naquela manhã, ele tinha esvaziado os armários e, a não ser pelas três caixas na sala, 
tudo estava do lado de fora. De vez em quando um carro diminuía a velocidade e as
pessoas observavam. Mas ninguém parava. E ele pensou que também não pararia."
(p.14)

"Qualquer valor que pedirem, você oferece dez dólares a menos", disse ela. "Devem estar
no maior sufoco."
(p.15)

"Ela continuou a falar. Contava para todo mundo. Havia mais coisas, ela sabia disso, mas não
conseguia exprimir em palavras. Depois de um tempo, parou de falar."
(p.20)

Deu uma certa melancolia, a leitura desse conto.

Onde encontrar Por que não dançam?: Iniciantes

          


CONTO #2: O pé da múmia (Théophile Gautier)


          Publicado em 1840, O Pé da Múmia (Le Pied de momie) conta a história de um rapaz que resolve entrar em uma loja de curiosidades (antiguidades, e etc...) a fim de comprar um peso de papel.
Porque ele é diferentão, e "não suporta as bugigangas de bronze vendidas em papelarias e invariavelmente encontradas sobre todas as escrivaninhas". Pois bem. O que ele resolve comprar para ser seu peso de papel único e exclusivo? Obviamente. Um pé de múmia. Mas não se trata de um pé de múmia de porcelana, cerâmica, ou coisa que o valha. Não. Trata-se, literalmente, de um Pé. De. Múmia. Dá pra ver a "pele", as unhas e tudo. Ato contínuo, o rapaz vai para casa, instala sua raridade sobre seus papéis e vai para a balada com os amigos. De volta, tarde da noite, provavelmente de cara cheia, ele dorme. E acorda no meio da noite com o som de alguém andando pelo seu apartamento - em um pé só.
E por aí vai o conto, com direito a passagem pelo Egito. É um conto fantástico, visto que ultrapassa as barreiras do real, mas está longe de ser um conto assustador, veja bem. É narrado em primeira pessoa pelo jovem que compra o pé da múmia, que é uma criatura com um humor peculiar, digamos:

"Você sem dúvida já deve ter espiado, por trás dos vidros, alguma dessas lojas, que se tornaram numerosas depois que virou moda comprar móveis antigos e que o mais insignificante corretor
acha que precisa ter seu "quarto Idade Média.
Era um lugar a meio caminho entre ferro-velho, loja de tapeceiro, laboratório de alquimista e
ateliê de pintor. Nesses antros misteriosos, onde as persianas filtram uma prudente meia-luz, o que há de mais notoriamente antigo é a poeira."
(p.9)

          Este conto faz parte de uma coletânea de histórias de terror direcionada para o público infanto-juvenil, e é o único que não está na íntegra no livro*:

                                 
* note a importância de se ler a página da ficha catalográfica dos livros...

          Fico só imaginando o quê, afinal de contas, foi considerado pelos editores trechos que precisaram ser suprimidos para adequar o texto aos leitores em formação... Sempre penso que essa leniência toda para com os "leitores em formação", além de desnecessária, forma leitores preguiçosos... Mas, enfim, it's one woman's opinion.

Divertido.

Onde encontrar O pé da Múmia: MEDO - Histórias de Terror

CONTO #1: A Valsa (Dorothy Parker)


          Publicado em setembro de 1933 na The New Yorker, A Valsa (The Waltz) é um relato engraçadíssimo de uma moça que está em uma festa onde todos dançam e ela apenas observa. Enquanto o faz, sente pena de quem está dançando com "aquele cara"; aquele ali, ele mesmo - o que dança mal pra burro, mas acha que está abafando. De repente ela se dá conta de que todos estão dançando, menos ela - e agora, aquele cara também está sozinho - e se aproxima - e a chama para dançar. Para não passar por mal educada, esnobe ou coisa que o valha, ela acaba aceitando o convite, e o que a gente vai acompanhar durante a leitura são os pensamentos hilários dessa moça enquanto dança com o pé-de-valsa (só que não).

          "O que dizer, quando um rapaz nos vem tirar para dançar? Obrigada, mas não quero
dançar com você, e pode ir lamber sabão. Ou então: Oh, muito obrigada, adoraria dançar,
mas é que, neste exato momento, estou entrando em trabalho de parto. Ou então: Oh, claro, 
vamos dançar, é tão raro hoje em dia conhecer um rapaz que não tenha medo de contrair
a minha beribéri. Não. Eu não podia fazer nada a não ser dizer que adoraria dançar com ele.
Está bem, vamos acabar logo com isso."
(p. 20)

"É excitante. Aposto que eu também pareço excitada. Estou completamente descabelada, 
minha saia está toda enroscada em meu corpo, posso sentir um suor frio na testa.
Devo estar parecendo algum espectro saído de "A queda da casa de Usher".
(p.23)

"Já nem sinto mais nada. Só percebo quando ele pisa nos calos porque ouço o esmigalhar
dos ossinhos. E tudo de importante que me aconteceu na vida passa diante dos meus olhos."
(p.24)

Rolei de rir.

Onde encontrar o conto (Em inglês. Desculpe, essa edição em português está esgotada): The Portable Dorothy Parker

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