A fileira de carrinhos (por Hpcharles)




Existem fases em que dormimos menos. O sono quica e te estraga não só para o dia seguinte, mas para a vida. Ficamos irritadiços, nos tornamos injustos e o café amarga. Mas os sonhos, pelo menos comigo, se tornam mais vívidos, significativos, mensageiros. Semana passada tive um sonho desses.
Me vi bem criança, ainda sem culpas ou arrependimentos, sem ter sido visitado pela política ou pela religião. Estava feliz. Sentado no chão de sinteco polido, montava uma longa fileira de carrinhos de metal. O sol entrava por uma fresta da janela não alcançada pela cortina colorida, aquecia a mim e clareava todo o recinto. Eu sorria mas ao mesmo tempo era meticuloso, obstinado em deixar a carreata retilínea. Ao notar um pequeno desvio de um dos carrinhos, me punha logo a ajeitá-lo, implacavelmente. Por vezes tentava usar o rodapé como parâmetro, mas não confiava em sua exatidão. Para aquela tarefa, só confiava em mim.
E ficava assim por muito tempo. Como se aquilo fosse imprescindível. Como se os mini para-choques dos mini veículos, necessitassem ser colados precisamente, um atrás do outro, de maneira peremptória e plena. O prumo era mais importante do que os carros, mais relevante do que a brincadeira, mais valioso do que eu. Era o que sabia naquele instante, naquele sonho.
No entanto, em determinado momento, de sobressalto, sem avisar ao sonhador, solto um riso divertido e dou um tapa nos “matchboxes”, desmanchando irremediavelmente todo o árduo trabalho que tivera. Após isso, me levanto e saio do quartinho como se aquilo tudo não tivesse sentido qualquer. Como se todo aquele esforço espartano para alinhar a fileira fosse inócuo, improfícuo, inútil em qualquer finalidade.
Acordo então e, novamente infestado de insônia, passo a deslindar a experiência que tive, buscando-lhe significado ou razão. Penso nos carros como momentos de minha vida e em como tentei ajustá-la, assim como fiz com a fileira. Me recordo de como tentava não deixar espaço entre os carrinhos, a fim de que se encaixassem de forma mais eficaz. Lembro dos momentos de minha existência em que o alinhamento parecia exato e o comboio era como uma hoste de vassalos rigidamente exigidos por suseranos para, depois, descobrir que não era. E que houve um desfile de carros alegóricos. Fantasias. E que a realidade é que a linha estava toda enviesada. E que minha vida também estava enviesada e eu não percebia. Apesar de, constantemente, tentar alinhá-la. Assim como não entendia como eu, quando criança quimera, fui capaz de desfazer tudo o que construí com apenas um tapa. Sem considerar que isso acontece todos os dias na vida de tantas pessoas.
O que saberia aquele garoto que eu, muito mais vivido, muito mais adulto, muito mais versado, não poderia saber? Me ergo da cama e me dirijo até a cozinha para beber um copo de água. Sento alguns instantes à mesa da sala e de repente tudo parece fazer sentido. Entendo tudo.
Descubro o que percebeu o menino ao destruir a fileira e que o homem não era capaz de desvendar. E não apenas isso, sabia o porquê. O sonhador não entendia o sonho porque não se cuidava de sapiência, mas de pureza. A perda da inocência, corolário nefasto de se viver a vida, é que passamos a enxergar algumas coisas e ficar cego à outras. Deixamos de confiar, de acreditar. Primeiro nos outros e depois paramos de confiar em nós mesmos, inúmeras vezes.
Nos concentramos em aparar arestas, em contornar crises, nos prendemos ao último carro da fileira, quando existem outros tantos mais à frente, mais atuais, que compõem a frota e que também foram importantes para que toda a linha, enfim, consignasse determinada figura. E então transformamos a caravana em cáfila, por dinheiro, e depois em cortejo fúnebre, por morbidez, ao invés de apenas brincar com os carrinhos. No final não vemos mais a fileira como ela é. Vemos a fileira, mais névoa. Vemos a fileira, mais as vicissitudes. Vemos apenas as vicissitudes. 
O que o pequeno menino sentado no quarto descobriu antes de mim, porque olhava e via, e depois fez questão de se esquecer para poder sobreviver, é que não fazia sentido ficar mexendo nos carrinhos. Mesmo em sua brincadeira soube que era perda de tempo, pois a linha nunca ficaria perfeita para ele. E não ficaria porque constatou que não é a fileira de carrinhos que fica torta. O que fica torta, na verdade, é a vida.

E então dormi para o menino poder voltar a brincar.

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