Desperto com o cheiro de meu próprio vômito.
O
lençol ordinário, que não troco faz semanas, está banhado em suor. O odor é
acre, pútrido. Olho para a mesinha de cabeceira ao lado da cama e noto que sobraram alguns dedos de
whisky na garrafa destampada. Por um milésimo de segundo acredito na vida e
levo o gargalo até a boca, sorvendo o que restou do veneno. Não fora o suficiente.
Lógico.
Abro
a cortina, a luz me cega. Do outro lado da rua, deitado na calçada, noto um
mendigo abodegado. Já está desperto, olhando para o nada. Sem esperar nada. Sem
acreditar em nada. Sujo, infame, sem filosofias a não ser a de roer os ossos
que lhe seriam jogados no dia da redenção. De minha janela, aceno para ele
mostrando a garrafa de whisky vazia. Ele balbucia algo ininteligível e senta
novamente em seu trono de cimento e cacos de vidro, na calçada. É Natal.
Mesmo
de longe, consegui vislumbrar feridas pustulentas em suas mãos. Chagas, “intratadas,
incuradas”, viciadas, infectas por se arrastarem no asfalto quente e coalhadas
de fezes de cães e ratos. Isso não lhe importava. E por que haveria de
importar? Um gato de rua apareceu metafisicamente e lhe lambeu os estigmas. É
Natal.
Fecho
as persianas, o sol me incomoda mais do que o moribundo do outro lado da rua.
Olho para a pequena mesa onde se encontra a velha máquina de escrever de meu
pai e procuro, ávido, algo que sei que deixei ali. Algo que me interessa. Muito.
E não é uma rena. É neve, pois é Natal.
Empurro
para o lado e jogo ao chão, emburrado e asnático, folhas e contas que não
paguei, e encontro o que queria. Não poderia ter usado tudo. Mesmo eu, o
calejado, o herói geneticamente privilegiado, o “specimen” fabricado para a
química transgressora, não conseguiria. Pego o cartão de uma loja de
departamentos qualquer, que recebi e nunca desbloqueei, e separo mais uma
carreira. As mãos não tremeram e a primeira benção se consignou. O milagre da
multiplicação se materializava e, em um ato de prestidigitação pura, aspirei as
três carreiras em uma tacada. Como um campeão. É Natal.
Todo
lado direito de minha face adormece e me sinto energizado. Enfia aquele seu Red
Bull no cu, ok? Aprende a brincar, playboy de merda. Olímpico e renovado, me
dirijo ao banheiro e abro a torneira da antiga banheira com pés de metal,
orgulho inalienável de meu muquifo decrépito. Calmo, inexplicavelmente calmo,
tempero a água com a ponta dos dedos. Tépido. É Natal.
Tiro
a roupa, aquela suja com vômito, agora ácido, e a jogo ao chão, porco sem lama.
Pego o maço de cigarros, a caixa de fósforos – e uma preocupação acima do
normal me aflige, no que concerne a molhar a pequena lixa na lateral da
caixinha. Levo também uma garrafa de vodka que guardo fechada faz dois meses,
algo que para mim equivaleria derrotar os malditos 300 espartanos, sozinho. Arrebento
o lacre com os dentes e minha gengiva sangra como se houvesse uma briga de faca em minha arcada inferior. Cuspo vermelho e exalo fel. Foda-se. É Natal.
Falta
pouco.
Pego
meu cadavérico exemplar de Finnegans Wake e leio as últimas páginas,
marmorizando um clichê patético, apenas para rir um pouco de mim. Como se fosse necessário. Incrível, mas passei
a desprezar Ulysses depois de um teco qualquer, em uma noite qualquer. Maldito
pó. Ou maldito Joyce. Escolham, tô nem aí. Afinal, é Natal.
Então
pego minha navalha.
Nunca
lidei bem com dinheiro, mas taí uma compra da qual nunca me arrependi. Em que
pese minha sui generis fixação com algumas armas brancas, ninguém condenaria
minha escolha. O cabo de madrepérola, o entalhe meticuloso, uma pequena
caveirinha engravada na lâmina. Foda. Se acreditasse em caixão e pertences para
o além, a levaria comigo. Mas não sou egípcio...e porra, é Natal! Que
mesquinhez é essa?
Molho
o filtro do cigarro na vodka, o acendo sem pressa e, cirurgicamente, o levo
aos lábios. Inalo a fumaça cancerígena, lembro do roto da esquina e me culpo
porque percebi que sobraria vodka. Derramo meia garrafa do álcool russo na
garganta. Sem concessões. A gengiva não existe mais...existe, mas não a sinto.
Tudo é perfeito. Pois é Natal.
Tomo
a navalha nas mãos ao mesmo tempo em que termino o Finnegans Wake. É incrível
como sempre fiquei produtivo com as drogas. Talvez porque elas me fizessem me
suportar, ou talvez porque me fizessem suportar os outros. Mas isso não será
mais um problema. É Natal e me darei o presente pelo qual anseio desde de os 14
anos. Foda-se a bicicleta, às picas com o autorama.
Olho
para meu pulso esquerdo, veias salientes, azuladas, uma pequena tatuagem
imbecil. Espraguejo mentalmente acerca da necessidade e precisão do corte
vertical, pois cometer um erro de principiante nessa altura do campeonato
tiraria todo o mérito de ter terminado a porra do Joyce. Um estúpido pensamento
pedante me vem pouco antes do metal tocar a carne e fico em dúvida se não
deveria mesmo é ter me concentrado em The Faerie Queene. Mas estou sem pó, com
pouca paciência e o dia da redenção é hoje. Essa é a promessa judaica-cristã em
toda a sua miserável essência. A Purgação da culpa que ela mesmo criou. E vou
cobrar pessoalmente daquele pederasta comunista que plagiou Confúcio, Epicteto,
Zoroastro, Buda e a puta que o pariu. Ou alguém acha que o pai da criança é o
Espírito Santo? Aquela pomba imbecil. Não é pomba, eu sei, é a porra da metáfora
draconiana de sempre. Por mim poderia ser um ornitorrinco, ou um dromedário,
muda pouco. Mas vamos acabar com o pessimismo. É Natal.
Dou
mais um gole na vodka, o esôfago já se foi, apago o cigarro na lateral do meu
pescoço, não por masoquismo, mas para ter certeza de que ainda estou vivo e me
sentir vivo uma última vez mais.
E então me opero.
É Natal e tudo dá certo.
E então me opero.
É Natal e tudo dá certo.
O
sangue transborda, férreo, não sinto mais nada. Dor, culpa, sofrimento,
amargura, raiva. Apenas paz. Não deixo bilhetes, bens, amores, filhos. Apenas
cesso de existir. E isso é lindo. Começo a desfalecer pela hemorragia e tenho
consciência disso...é só brilho e alívio.
Meu
corpo finalmente vai escorregando nas águas rubras da banheira e ouço um
barulho oco, seco. A porta se abre e vejo uma figura de cabelos compridos, já
indistinguível por conta de meu estado. Ele segura a minha mão. Diz que tudo
vai ficar bem. Se debruça sobre o chão, recolhe a garrafa de vodka cheia pela
metade e se vai. Veio pela garrava e levou meus pecados. Todos eles
Foi
o único Cristo que conheci. E foi o melhor. O desdentado, o mulambo que defeca
no chão, o maltrapilho banido pela cheiro de merda que emana de seus fundilhos,
o pária salvador com sua cabeça infestada de lêndeas. Mas o que bebeu da minha
garrafa sem limpar o gargalo. O único que nunca me prometeu nada que não
cumprisse. O único que compartilhou minhas fraquezas, sem perguntar quais seriam.
O único que não me julgou. O único que me deu a mão, quando viu o pior de mim -
e manteve a mão junto à minha -, me redimindo da vida que nunca quis, me
fazendo vencer o mundo, me devolvendo ao universo como poeira das estrelas, pagando
minha dívida, extinguindo o fogo e me transformando em carne. Apenas carne e
pus. Nada mais. Porque nada há mais. Porque é isto tudo o que somos. Quando a navalha
encontra a carne e lhe ensina tudo o que é preciso saber.
É
Natal.
Isso é escrever! Gênio.
ResponderExcluirO "É Natal" ao final de cada parágrafo é muito bom pois amarra o texto que é bem escrito.
ResponderExcluirGabriel Birkhann