As Caixas de Nossas Vidas (por Hpcharles)



Olho para um canto de meu quarto e nele há uma caixa. Nela nada há de materialmente significativo. Alguns cd's, roupas usadas, itens de higiene pessoal, fotografias que hoje fazem pouco sentido. No entanto, ela me incomoda. Preciso tirá-la de minhas vistas. Por que?

Existe outro conteúdo dentro dela. Só que é intangível, invisível fora de minha cabeça. Com esse é mais difícil de lidar. Ele é altamente representativo, pessoal. Traduz lembranças, sentimentos difusos. Sei que preciso compreendê-los ao invés de evitá-los. Uma cansativa sensação de fracasso dá um peteleco em meu peito. Me levanto e então prossigo.

Uma questão precisa ser relevada nesse processo. Ela é biológica, mas também é filosófica. O ser humano é o único animal que possui consciência de sua mortalidade. E isso tem um preço caro. Todo conhecimento tem um custo. Talvez venha daí sua dificuldade em lidar com perdas. Seu óbice paradoxal em buscar o precípuo para seguir em frente. Encerramento.

E essa é a sua maior tarefa ao longo da vida. Talvez a única. Lidar com suas perdas. As vitórias todos tiram de letra. A promoção no emprego, o carro novo, aquele beijo que há muito que se queria dar e finalmente aconteceu, o gol do campeonato aos 45 do segundo tempo. Tudo isso desce “redondo”. É fácil, remansoso. Não é preciso preparo, transpiração. Por vezes nem sequer saboreamos. Mas deveríamos.

Já com as perdas a história é diferente. A morte de um familiar, a demissão inesperada, o enterro de uma relação. Isso é foda. Com PH e vidro moído. Mas esse é um trabalho que precisa ser feito. Sem esse luto não seguimos em frente. É preciso vivê-lo. Só que ele é amargo, o gosto é de fel.

Certa vez uma grande psicanalista me disse: “mais de 90% das pessoas que sentam em meu divã, o fazem por um mesmo motivo. Culpa.”

Culpa porque não fizemos melhor, porque “deveríamos” ter feito melhor. Onde está a minha máquina do tempo? Nos cobramos incessantemente pelo que poderíamos ter feito, em uma atitude que não passa de mera masturbação intelectual. Não podemos mudar o passado. Mas podemos tentar entender nossas atitudes, repartir a culpa, aceitar nossa falibilidade primata e então partir para outra.

Me dispo para o banho e ao olhar no espelho, reparo em meu corpo nu e percebo rugas, pequenas cicatrizes e imperfeições. Porque não as teria também na “alma”? Não pertencem ao mesmo ser? Só não são vistas. Até conseguimos disfarçá-las para os outros, mas não para nós mesmos. Ainda não criaram tal maquiagem. A solução é abraçar o espólio, conviver com ele.

Aliás, não concordo muito com a palavra “superação”. Parece coisa de comercial de livro de auto-ajuda. Me parece que convívio, é o vernáculo pertinente, “in casu”. Fico abismado quando leio que tal celebridade terminou com o “amor de sua vida” ONTEM e hoje declara que hoje são “bons amigos”. Quem são esses super-heróis? Ainda tenho que lidar com o término de minha primeira namorada, de quando tinha 15 anos. A questão é que o tempo embalsama a dor. Serve de unguento. Melhora tudo. Mas dá uma chafurdada para você ver?

A água corre em meus cabelos e, em um arroubo pragmático, decido que ao sair do banho vou esvaziar aquela caixa e pronto. É pá de cal. Um alívio passa correndo pelo chão do banheiro, mas entra no ralo. Falar é fácil.

Invento desculpas e xingo Klüber-Ross. Preciso da caixa para colocar as tranqueiras, é isso. Juro que hoje à noite quando eu voltar do trabalho eu limpo aquela merda. Estou na fase da “barganha”. Mi-mi-mi puro.

Enquanto me enxugo, tomo coragem e resolvo parar de evitar o inevitável. Por minutos, apenas olho para seu conteúdo. Não ouso por minhas mãos lá dentro. Titubeio. A tentação de empurrar o papelão para baixo de um móvel qualquer é grande. Penso com meus botões: “mas para que mexer nisso? Deixa quieto, oras! Não está atrapalhando a passagem”. Mas está...

Fazemos tudo para evitar a dor. E esse é o maior problema. Empurramos para baixo do tapete. Fingimos que não vemos. Juramos que nós vamos mudar, os outros nos juram que vão mudar. A dieta começa na segunda. E as caixas vão se acumulando embaixo do armário. Será que ainda tem espaço?

Decido por derradeiro que o “couro vai comer” e compulsivamente retiro os objetos, separando os que podem ser úteis daqueles que já deixaram de ser úteis faz muito tempo. Mas se já não eram úteis, por que não foram jogados fora antes?

Porra de retentividade mórbida! Me dou conta então de que certas coisas já estavam mortas faz tempo e era eu que insistia em guardá-las. Depois era só colocar a responsabilidade nos ombros do outro, né? “Mea culpa, mea maxima culpa”.

Aquele alívio que passou correndo no banheiro, agora estava ali do meu lado, olhando para mim. A tensão diminui. O ritmo e a facilidade da tarefa aumentam, causando surpresa inclusive a mim.

Tirei a rejeição, a baixa auto-estima já saiu, a raiva pulou para fora com a foto do aniversário na casa dos amigos. Dou uma risada quando lembro que odiei aquele dia. Quando me recordo que não queria sequer estar lá. Porque fiz tanta tempestade para limpar essa caixinha? Porque diabos na hora da tristeza, só lembramos das coisas boas e não daquelas que nos trouxeram até aquela situação, em primeiro lugar? Agora vejo com clareza meridiana que tanta coisa já havia perecido e a única coisa que fazia a caixa ser importante era a caixa em si, e não seu conteúdo. Acreditei que ali dentro houvesse um leão, mas jazia um criceto.

Um sorriso de vitória reside em meu rosto, agora. Claro que tenho que me cobrar por não ter feito isso antes. “Olá culpa filha da puta, como vai?" Tudo tem seu tempo. Mas também não devemos esquecer que somos nós que fazemos nosso tempo. Que a vida é ação.

De fato, não limpava a caixa porque não vislumbrava os motivos corretos para fazê-lo. Precisava limpar a caixa não para jogar tudo fora. São só objetos, não significam nada de verdade. Precisava limpar a caixa porque precisava da própria caixa, não do que estava dentro.

Precisava da caixa para disponibilizar o espaço. Para poder enchê-la de coisas novas. Não tinha percebido que a caixa é a mesma de sempre. O que colocamos dentro dela é que muda. Como colocar novas fotos, novos empregos, novas roupas, novos amores, se ela ainda está repleta de objetos velhos? Se não há espaço?

Lembro do brilhantismo de Newton e dou uma gargalhada quando penso na possibilidade de que o cientista tenha descoberto que “dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço”, possa ter ocorrido ao tentar arrumar o baú da esposa.

Minha pasta com material de trabalho fica incrivelmente leve. Me visto com alegria e roupas coloridas, despojadas. Ajeito o cabelo e pego as chaves do carro. Mas paro um instante e olho para o mesmo canto do quarto onde se encontra a mesma caixa.

Dessa vez ela não me assusta, pelo contrário. Está vazia. É convidativa, atraente. Mal posso esperar para saber o que vou colocar nela. O que estará reservado para aquele espaço. Quais sabores, odores, quais viagens? Qual a cor do cabelo, gosto musical, que filmes entrarão ali? Não importa. O que importa por enquanto é que ela está disponível. Já estava faz muito tempo. Eu é que não via.

Recebo um e-mail no telefone. Um amigo me chamando para seu aniversário. Um novo aniversário. Aceito. Bato a porta. Encerro o assunto. 

E a caixa finalmente é fechada.

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