“As massas nunca tiveram sede de verdade. Elas querem ilusões
e não vivem sem elas. Constantemente, elas dão ao irreal, a procedência sobre o
que é real; são quase tão intensamente influenciadas pela mentira como pelo que
é verdade. Tem uma evidente tendência a não distinguir entre as duas.”
Sigmund
Freud
Será
que alguém aí, sem pedir ajuda ao Dr. Google, seria capaz de dizer o que
possuem em comum os sobrenomes Pradaztki, Taketani e Silva? Lógico que não. A
pergunta é quase retórica.
Mas
e seu eu lhes disser que são heróis brasileiros. Heróis mesmo, de verdade.
Daqueles que arriscaram a própria vida para salvar a de outros. E aí, lembraram?
Já ouviram falar? Nada? Ninguém se arrisca? Foi o que pensei...
E se
eu disser Júlio César? Fácil, né? Todo mundo sabe. Esse abençoado, agraciado
pelos deuses, esse “herói”, hoje imaculado, é nome fácil na boca de todo país. Todos o
conhecem, sabem o que fez e o número de sua camisa.
Júlio
César não salvou ninguém. Defendeu dois pênaltis. Teoricamente, se não os
houvesse defendido, ninguém morreria. Talvez um infarto fanático acometesse
algum torcedor canarinho, mas fora isso, a vida seguiria. Famílias não seriam
guilhotinadas pela ocorrência de uma eliminação precoce. As lágrimas que cairiam
dos olhos vítreos, hipnotizados pela anestesia da maior competição do esporte
bretão, se enxugariam rapidamente. Sem maiores consequências. A cerveja ainda
seria bebida e o churrasco também seria comido. Não haveria tragédia nenhuma.
As tvs, os jornais e boa parte da imprensa, chamaria de tragédia. Mas apenas porque ajudaria a vender mais e por concessão semântica. Pela mesma concessão, aliás,
que se faz ao chamar um goleiro de herói.
Há pouco mais de 40 anos, no
dia 1 de janeiro de 1974, o Brasil vivenciou uma das maiores tragédias de sua
história. O Edifício Joelma foi devorado em chamas, causando a morte de 188 pessoas e
ferindo outras 300. Muitos desses óbitos foram oriundos de pessoas que optaram
por se jogar de alturas invencíveis a fim de não sucumbir de maneira supostamente pior. Entenderam o sentido mais apropriado da palavra tragédia?
Dezenas e dezenas de seres humanos morrendo queimados ou poli-traumatizados se
constitui em uma tragédia. Ser eliminado em uma competição de futebol, não.
Desagradável, triste, lamentável? Talvez, para quem realmente se importa.
Trágico, jamais.
E
quanto ao “heroísmo”? Transposto o emprego hiperbólico e vagabundo da palavra,
me digam qual o heroísmo houve em se defender duas bolas mal chutadas? Qual o
real perigo existia ali para o nosso espartano de verde e amarelo? A bola
possuía pontas envenenadas? Se a pelota entrasse crianças morreriam? A “honra
da pátria” estaria maculada?
Pois
me permitam apontar a distinção. O prédio localizado na Avenida 9 de Julho, 255,
não possuía heliporto. Todas as pessoas que, desesperadas, buscaram o ponto
mais alto do edifício, se depararam com uma laje e telhas de amianto. Um
resgate aéreo teria que ser simplesmente inventado naquele local. Tudo pesava
contra, qualquer planejamento se mostrava inconcebível. Mas para a sorte de muitos, a equipe do
helicóptero UH-1H da FAB, decidiu por desafiar o improvável e consolidar uma
tarefa quase suicida. Não havia margem para erros.
A
aeronave pilotada pelo Major Aviador Pradatzki, pelo Tenente Aviador Taketani e
pelo Sargento Silva, se embrenhou na ação que resultou no
salvamento de inúmeras vidas. Algumas
delas deixaram o edifício agarradas aos “esquis” da nave, como se imitassem um
filme de Hollywood. Essa era a situação encontrada pelas equipes de resgate.
Caos.
Esse
helicóptero foi o único que teve participação “efetiva” na retirada das pessoas
do teto do prédio. Entretanto, muitos outros heróis se constituíram na ocasião.
Seria injusto, pelo que li, não fazer essa ressalva. Heróis paramédicos, heróis
bombeiros, heróis voluntários, heróis anônimos, que naquele tenebroso dia,
resolveram arriscar a própria vida para preservar a de tantos outros. Não
ficaram famosos, não recebiam salários milionários para colocarem suas
existências em risco e nem fizeram o que fizeram porque estava em jogo o
“orgulho da nação”. Fizeram porque foi preciso. Fizeram porque se não o
fizessem, gente morreria asfixiada ou carbonizada.
Escrevi
todos esses parágrafos porque, francamente, me incomoda um pouco a distorção em
que vivemos por conta de uma competição que possui fito de lucro financeiro e
político e nada mais. Como se não bastassem as isenções fiscais concedidas a
instituições bilionárias, à revelia do bom senso e das prioridades, bem como a
construção, com dinheiro público, de estádios desnecessários em locais indiscutivelmente inapropriados,
ainda se vulgariza, por via oblíqua, o heroísmo de tantos em nossa história,
para conceder tal título a alguém que está longe de merecê-lo.
É de
bom alvitre lembrar que Júlio César nada tem a ver com isso. Pelo menos não o
vi abraçar a alcunha ou colocar a coroa. Mas, a bem da verdade, também não o vi
rejeitá-la. Apenas o vi chorando, dizendo que passou por poucas e boas após
falha em lance que resultou na eliminação do Brasil na última Copa. Ele que me
desculpe, mas não me comove. Me solidarizaria se houvesse um problema de
doença, ou algo impeditivo para seguir sua vida. Ao que tudo indica, não há. O
que dizer então dos tantos sem moradia, muitos outros liminarmente retirados de
suas residências para que se pudesse realizar um evento que está longe de ser primordial
ao interesse do povo. Bom, talvez não se contarmos aí o pão e circo. Mas essa é
uma discussão que mereceria um texto próprio.
E o que
falar dos milhares na miséria, sem acesso a educação ou saúde decente, que vivem de salário
mínimo? Esses não serão lembrados ao fim da Copa, já sabemos - e não me venham argumentar que o dinheiro gasto não seria suficiente para melhorar a tal situação ou impactar significativamente o erário público, vez que 10 reais mal gastos, continuam sendo 10 reais mal gastos.
O choro dessas pessoas não remontará a heroísmo ou virtude, mas ao enorme problema social que vivemos. Então, por obséquio, não vamos chorar junto com nosso arqueiro. Ele resta remansoso em uma concentração luxuosa, cercado de amigos e apoio. Saudável. Apto. Bem de vida – por justíssimo merecimento, diga-se de passagem – e consagrado.
O choro dessas pessoas não remontará a heroísmo ou virtude, mas ao enorme problema social que vivemos. Então, por obséquio, não vamos chorar junto com nosso arqueiro. Ele resta remansoso em uma concentração luxuosa, cercado de amigos e apoio. Saudável. Apto. Bem de vida – por justíssimo merecimento, diga-se de passagem – e consagrado.
Mas
para quem faz questão de chorar ou encontrar heróis de verdade, basta procurar
nas páginas de nossa história. Nela encontraremos professores brilhantes,
cientistas e médicos revolucionários, profissionais das mais diversas áreas
que, ao arrepio da própria vida, se dedicaram a de outros. Não veremos louros
em suas cabeças, não serão glorificados pelas arquibancadas, não os flagraremos
descendo de luxuosos carros para ir de encontro a uma multidão de microfones e
holofotes, mas isso só os torna mais heróis e não menos.
Vestindo
suas capas de invisibilidade, disfarçados nas salas de aula, enfurnados
anônimos em laboratórios, escondidos na insalubridade de nossos hospitais,
teimosos mortais produzindo riqueza para os abastados, esquecidos no quintal de
nossa grande nação, se encontram nossos verdadeiros artilheiros. Apenas eles
podem mudar o jogo, vencer o campeonato, perpetuando o gol salvador. Um gol sem
narração inflamada, ou seguido de comentários com voz emocionada, quiçá flébil, um
gol sem “tira-teima”, apenas porque não precisa.
Havia
um César embaixo das traves e havia um Silva na cabine do
helicóptero. Ambos tiveram sucesso no que empreenderam e foram importantes em
suas tarefas. Mas apenas um é herói. Lembrem-se disso.