2001, Primatas & Azêmolas (por Hpcharles)


Sábado passado, por conta da Tati estar lendo o livro de Clarke e por sugestão dela, revimos o filme 2001. No dia seguinte, ocorreria a última rodada do Campeonato Brasileiro de Futebol de 2013. Tal peleja determinaria o descenso ou não de uma tradicional equipe do esporte bretão. Sendo assim, muita coisa estava em jogo. Muita emoção, muita tensão, muito tudo.

A partida era entre Atlético Paranaense (mandante) e Vasco da Gama. Com poucos minutos de jogo o time do sul já ganhava por um a zero, o que sepultaria as pretensões cruzmaltinas de permanecer no  seleto grupo de elite. Ao que tudo indica, e ainda existem dúvidas a esse respeito, a torcida atleticana teria se dirigido ao espaço destinado à torcida visitante, originando assim, um combate tão sanguinário quanto estúpido. 

Como não havia policiamento presente, a batalha tomou proporções assustadoras. A Idade Média se fez presente no pequeno estádio em Santa Catarina por poucos, mas intermináveis minutos. As cenas foram tão impressionantes que chocaram até pessoas como eu, acostumadas, desde criança, a frequentar arenas esportivas e, por conseguinte, já escolado em presenciar néscios conflitos entre   azêmolas uniformizadas.

Houve de tudo. Socos, pedras, paus com prego na ponta, chutes na cabeça, agressão a pessoas já desacordadas e, portanto, incapazes de se defender. Se isso não é tentativa de homicídio, eu não sei o que é. Assisti às cenas horrorizado, mas hipnotizado, por inúmeras vezes. Em determinados momentos, inconscientemente, acenei para a televisão, atônito, como se quisesse dizer aos torcedores que parassem de tentar matar uns aos outros. Depois de um certo tempo, uma imagem me veio à cabeça e, apesar de triste, não mais fiquei surpreso ou anestesiado.

Me recordei da emblemática cena que vira no fabuloso filme de Kubrick na noite anterior, quando um “homem-macaco” descobre que pode usar um simples pedaço de osso, como arma. Lembrei do enfrentamento ao outro grupo de primatas na luta por um pequeno poço, que terminou com o quase sádico assassinato de um dos macacos por pauladas (ou ossadas se preferirem). Imagens fortes, que lembravam com boa dose de semelhança, o que se viu na partida de futebol em comento.

Nesse momento então, me lembrei que mesmo após séculos de evolução, acrescidos de regramentos de convívio social e a criação de penalizações jurídicas de esfera civil e criminal, ainda somos primatas. E que, dependendo das circunstâncias, como a ameaça à sobrevivência e a individualidade sublimada pelo comportamento de grupo, todo esse estofo amealhado ao longo de milênios, subitamente desaparece. Emergem então os macacos que somos. Porque é isso que somos. Apenas macacos.

Macacos com polegares opositores, que construíram ferramentas que, por sua vez, nos deixaram no topo da cadeia alimentar. Não somos mais devorados por felinos como na película de Kubrick, mas ainda assim, em situações específicas, nosso condão de consciência evapora. Quem duvidar que veja as cenas. Fáceis de encontrar em qualquer Youtube da vida. E depois que assistirem, me digam: qual é a diferença para o grupo de animais pisando e chutando a cabeça do torcedor rival, já desmaiado, para o grupo de primatas que espanca o adversário de outro grupo em 2001?

Notem bem, esse texto não possui fito de trazer à baila quaisquer outras digressões que não as oriundas desse comportamento assustador. Me parece, e não posso garantir, pois sou apenas um palpiteiro na matéria, que se alegar psicopatia em alguma instância, é pertinente, mas apenas no momento em que tais monstros, optaram voluntariamente pelo embate. No hora em que um doente qualquer, lá no meio da algazarra, decidiu e propôs a outros doentes, que PROCURASSEM a tragédia.

No entanto, na hora em que a “porrada estancou” e “pés de mesa” se transformaram em armas letais, em um conflito generalizado, não há mais que se falar em patologia individual. É caso de matar ou morrer. Evidente que na perspectiva do infeliz que está lá dentro. Sobretudo de quem está sendo atacado. É lamentável, repugnante, que em 2013 ainda tenhamos que assistir a isso em uma competição esportiva. Pessoas que fora dali possuem família, emprego (alguns pelo menos), vida social, vestindo a fantasia de que são gladiadores de seus times, em uma batalha no Coliseu. O que leva a isso? O que passa pela cabeça dessas pessoas? São apenas frustradas? São realmente psicopatas (os que induzem, alimentam a situação)? Marginais são. Pelo menos naquele momento. Se antes não eram, se tornaram.

É cristalino que uma série de fatores contribuiu para o terrível acontecimento em Santa Catarina. Falta de organização, ausência de efetivo policial no estádio, inexistência de delimitação física separando as duas torcidas. Mas isso não é objeto do texto. Aqui o questionamento é quanto ao comportamento que se obtém de seres humanos quando expostos a um ambiente apropriado para a violência. É a constatação que, dependendo da situação, somos capazes das piores atrocidades. De impor o pior, inclusive à nossa própria espécie. É apenas uma lembrança de que nossos antepassados estão aqui mesmo, dentro de nós. Com um osso nas mãos.

5 comentários:

  1. Muito bom o texto Hp. Quando acabei de lê-lo fiz uma conexão inusitada na minha cabeça, que me deu até alguma esperança com relação a nós, seres humanos no geral. Com relação ao primata que vive dentro de nós. Não vamos esquecer que primatas (ou nós no caso, já não vejo mais diferença alguma, mas ok...) não são selvagens por completo. Que tal deixar os ossos de lado e catar piolho uns nos outros...não é assim que se fazia, ou se faz ainda? Bem, ao menos deveria ser. rs
    Muito bom mesmo, assim como todos os seus textos. Continue escrevendo, eu continuarei lendo...

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  2. Sabe HP, eu tbm sou muito de frequentar estádios. Eu torço para o Fluminense, mas no domingo estava assistindo ao jogo do Vasco, pq tbm era importante para o meu time. Já cheguei a ir em Fla x Flu e nunca vi algo parecido. Eu pensei q estava assistindo a uma luta do UFC. É incompreensível, ter um jogo que um time pode ser rebaixado e o outro ficar no G4, não ter policiamento. E agora todo mundo tira o corpo fora. Não é culpa de ninguém?! A punição de mando de campo é pouco, o certo era os 2 clubes ficarem 1 ano sem participar do campeonato, assim como fazem com os times lá de fora.

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    1. É Thainara, nem entrei na questão da apuração de responsabilidade ou punição a ser adotada pq preferi me direcionar à barbarie em si. Mas disse exatamente o que vc escreveu para a Tati. 20 perdas de mando não resolve NADA. Você está certa, bane os caras por 2 anos de quaisquer competições oficiais para ver se as coisas não mudam. Está complicado. E agora, ao que tudo indica, teremos mais uma batalha, só que agora, extracampo. Onde se apelará para a "tecnicalidades" e pelo "apego à lei", confundindo o que é legal com o que é moral, em mais um desserviço ao futebol e ao esporte. Grade abç.

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  3. Sempre que vejo brigas em campo me vem a mente os primatas! Sou professor de história, normal fazer essa associação. Mas você descreveu perfeitamente a sensação que dá na gente! Pleno século XXI. Gostei muito do canal no youtube, estou adorando o blog. Abraço!

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