A vez da solidão. Para ganhar é preciso comprar o ticket (por Hpcharles)




Sim, meus caros, eu sei que "não é fácil de pegar com a mão". Eu sei que as decepções são difíceis de suplantar, amargas para engolir, demoram a ser esquecidas. Mas não há remédio, não existe outra alternativa. Em algum momento, se você não tem intenção de passar o resto da sua existência sozinho, precisa arriscar.

É claro que um cínico qualquer perguntaria o porquê. Alegaria que está bem assim, que seu dia a dia melhorou após o divórcio, término do namoro ou do pé na bunda que deu ou levou. Pode até ser, não tenho a pretensão de conhecer a todos e suas razões. Mas uma coisa eu sei. A vida é um fardo muito pesado para se levar sozinho.

A solidão é uma questão filosófica difícil de ser tratada. “Chegamos aqui sozinhos e vamos embora sozinhos”, diz o velho chavão. Mas tirando a masturbação intelectual, penso que o que realmente importa nessa abordagem específica, é o que fazemos nesse ínterim.

Deixemos um pouco de lado então as questões religiosas ou metafísicas e cuidemos daquilo que sabemos com certeza: que temos uma vida para viver e que seria útil escolher bem com quem vamos dividi-la. Comungar dores, risos, contas, angústias, cama, prazer e perdas. Sim, porque para dividir vitórias não vai faltar companhia, “trust me on this”.

Eu concordo com o “melhor só do que mal acompanhado”, e quem não concorda é porque ou nunca esteve mal acompanhado ou o mais provável, que não tenha se dado conta disso na ocasião. Mas daí a levar essa máxima como projeto de vida, acho complicado. Em algum momento você vai precisar de troca, mesmo que seja o motherfucker mais legal do planeta.

“É necessário gostar de si antes. Tem que se gostar sozinho”. Ahãm, e daí Osvaldo Montenegro? Por que uma coisa exclui a outra? Você tem que se sentir bem consigo, ser boa companhia para si mesmo, estando só ou acompanhado. Se tu és um pé no saco, e nem você se suporta, por que diabos alguém mais haveria de fazê-lo?

Existem exceções, evidentemente. Os ermitões, os misantropos de último nível, alguns religiosos que decidiram por entregar suas almas na busca do que está além dessa “vidinha trivial e patética”. Mas de boa, isso não é o convencional. Lá no fundo todo mundo deseja alguém para lhe fazer uma canjinha quando bate aquela gripe safada e inadvertida. Ok, alguém que pelo menos pegue a aspirina já tá valendo. Vamos ser humildes.

O problema é que essa “busca” parece estar sendo mal feita pelo que se vê, lê e ouve, hodiernamente. É reclamação em cima de reclamação. É um tal de “homens não prestam e mulheres são putas”. Mas me digam, se nêgo não consegue nem usar o Google apropriadamente, ou encontrar o outro pé de meia que caiu embaixo da cama, como esperar que ache um parceiro decente? Não, não é fácil. Mas há oferta e há demanda, garanto.  Ainda assim é complicado, não nego.

E é complicado por vários motivos. Porque às vezes estabelecemos parâmetros ilusórios, porque não colocamos na equação nossas próprias características, porque somos teimosos e temos a tendência a repetir erros em nossas escolhas. Ah Freud, se deixassem você cheirava até o recamier, mas nessa você deu uma bola dentro.  

Alguém discute a mania vagabunda que temos de nos focar em modelos que criamos dentro da nossa cabeça, inclusive no que tange a relacionamentos? Somos influenciados pela mídia, pela família, pelos amigos, pela religião, pela revista Caras. Não é raro que após algum tempo, percebamos que estamos ao lado de alguém que nada tem a ver conosco. Sim, já lhe ocorreu aquela situação onde,  após terem se passados aqueles primeiros dias mágicos, você olha para o lado e solta um estrondoso “what the fuck”?! Pois é. Foda. E aí você vai culpar a quem, bonitão? Ao outro, é lógico. A culpa nunca é nossa, que somos perfeitos e quebramos o coco sem arrebentar a sapucaia.

“Ah, mas os opostos se atraem”. Na sua bunda, que se atraem! Não se você buscar algo duradouro. Tente ficar com uma pessoa que gosta de saltar de paraquedas, enquanto você é daqueles que prefere ficar vendo filmes embaixo das cobertas. É óbvio que existem exceções, mas a verdade é que, a longo prazo, mesmo cedendo porque no início tudo é lindo, daqui a alguns meses ou anos, o seu temperamento, preferências, ou gosto pessoal, vai pesar na balança como um hipopótamo fêmea, grávida de 12 meses. Seja adulto, por obséquio.

Se você acha que mesmo sendo uma nerd dos infernos, vai ser legalzão, ano após ano, sentar no meio da torcida do Taubaté e ficar vendo seu amado ogro comer hot-dog frio e beber cerveja quente, pode acordar e descer da sua abóbora, Cinderela. Isso só acontece nos contos de fada. Consideremos que você acredite que o sexo é transcendental, inigualável e que o cara tenha um “pipi” igual ao do Kid Bengala. Ainda assim, quanto tempo do dia você gasta com sexo, mesmo? Sim, porque aqui na terra, o dia tem 24 horas.

O que quero dizer, e que se fodam se acham arrogância da minha parte é que, se querem alguém mesmo, de fato, pra valer, de verdade, a sério, sem palhaçadinha, tentem uma pessoa que possua algo em comum convosco. Por favor. Por mim, vai? Tô pedindo com educação. Na moral! 

E se for para brincar, HP? Bom, aí é contigo e por mim você pode pegar até o mendigo na feira, problema seu. Mas estou me referindo a algo estável, a projeto de vida. Tem diferença aí, não tem? Pois é. Ou "todas as pessoas que passaram em sua vida, levaram um pouco de você"? Fuck! É você de novo, Osvaldo Montenegro? 

Não é novidade que a convivência, a repetição impetrada pela mesmice inelutável do mundo, é terrível para o romantismo. Os problemas causados pela imbecilidade humana, a falta de dinheiro, a fome na África, seu time caindo para a segunda divisão, tudo isso é de uma paumolescência atroz, mas porra...vamos ajudar um pouco ao destino.

Se você é caseira, adora ler, gosta daquele friozinho e de beber um expresso ouvindo Artic Monkeys, para quê foi se aconchegar ao lado do “rei da noite, só li Paulo Coelho e adorei, tô na praia ao meio-dia bebendo cajuzinho e cantando “vou dar um tapa na barata dela” do Só Pra Contrariar”? E depois vai reclamar para as miguxas, que o bacana não era “aquilo que você pensava”? Ora, me mire e me erre.

Vejam bem meus amiguinhos, não estou dizendo que é inviável. Estou dizendo que é improvável que funcione depois de algum tempo, quando os prazeres da carne (ui!) já estiverem arrefecidos. Essa é a realidade. Lidem com isso. A vida não é uma novela da Globo. Não há gente que brilha no sol fora da ficção. O que há é a possibilidade de se encontrar alguém sussa, gente boa pacas e que vá te botar um sorriso no rosto com frequência maior do que a habitual.

É preciso haver troca, entendem? Admiração, compaixão, empatia e de preferência, senso de humor. Sim, senso de humor. Me lembro que uma vez a Revista Playboy fez uma pesquisa, no mundo inteiro, e perguntou qual seria a característica que a mulher mais busca em um homem. Para a minha surpresa, a escolha não foi dinheiro, beleza ou ser amigo do Neymar. Foi o senso de humor.

Viu, seu quebrado, feio da porra, amigo do jornaleiro da esquina, você tem uma chance! Seja divertido, criativo, gente boa. E você também “gatinha”, deixa o cara ver o jogo, entenda que shopping não é para morar e que a carta da TPM só vale uma vez por mês. Não seja uma “fucking biaaaatch”.

A verdade é que em um mundo cada vez menor, há mais possibilidade de se encontrar alguém. Isso é matemática. E ela não funciona apenas quando quer. Existem redes sociais, sites de relacionamento, conversas por vídeo. Pare de chorar. A boa notícia é que, ao contrário do que dizem as más línguas, tem gente interessante aí fora, sim. Esqueça a letra torta e improdutiva que aquela sua amiga chata dos infernos te deu. Ou aquele mimimi do seu amigo mau fodedor, piroca de pano. Tem um pessoal de bem com a vida que quer encontrar você, que está aí carrancuda, sem vontade de cantar uma bela canção.

Nem todo mundo é filho da puta e nem todo mundo que foi filho da puta precisa continuar a ser. Dicas? Simples. Seja receptivo, ouça mais do que fale, se for o caso. Não tente ser o centro das atenções sempre. Se cuide, você não precisa comer pão de queijo e cupcakes, todos os dias. Diga que sente falta sem motivos, a não ser apenas por sentir falta. Se mostre presente. Se faça imprescindível. Use desodorante.

Acredite, existem mil fatores que dificultam uma relação, mas o maior deles pode ser você mesmo. Se fez um acordo de exclusividade, de livre e espontânea vontade, mantenha sua palavra. Não seja babaca. Não dê uma de malandro. Tá cheio de mané que se acha malandro por aí.

Eu sei, “mulheres são chatas, homens são bobos” e não abaixam a tampa do vaso. Mas é a vida. E como disse lá no início, essa vida é um mostro difícil de ser domesticado sozinho. Não há jeito. Não há atalhos. Macumba não funciona. Para sair da inércia, você precisa arriscar. Como, quando, onde e com quem, é problema seu. Só seu. Apesar de uma porrada de gente meter o bedelho na sua história ao invés de viver a própria.

A esses largue um foda-se porque o ganho ou custo, no final das contas, vai recair é sobre você. Bom, pelo menos deveria. Pensando bem, antes de jogar os dados, vá correndo até o pai dos burros e dê uma olhada na palavra “responsabilidade”. É queridão e queridona, arriscar é diferente de ser porra louca, “cappice”?

Sendo assim, não se esqueça de que para fazer a viagem e retirar o prêmio, é preciso comprar o bilhete antes. Se ganhar, e aí vai um grande “SE”, entenda que ao contrário do que dizem as teorias de conspiração, você pode ter seus momentos de felicidade irrestrita, de sorrisos incontidos e de afeto genuíno.

Se o esforço vale a pena? É óbvio que vale.

"Darei dois a ele, tirarei dois de ti" - um conto de terror brasileiro (por Hpcharles)


Darei dois a ele, tirarei dois de ti

Capítulo I

O SUV devorava o asfalto molhado na pista central da Avenida das Américas em direção ao Recreio dos Bandeirantes. Já passava das 23:00hs quando finalmente o assunto veio à tona por iniciativa de Adriano, ao presenciar os primeiros soluços do choro contido de Marília, sua colega de trabalho e brilhante advogada civilista.

-       -  Marília, a gente nunca sabe. A medicina está muito desenvolvida, as coisas mudam em pouquíssimo tempo.
-       - Menos de um mês, Adriano. Esse é o tempo de vida que deram a meu marido. Menos de um mês. – retrucou Marília sorumbática.

A jovem advogada conhecera Jorge nos primeiros anos de faculdade e, desde então, nunca se separaram. O casamento foi uma consequência inevitável de tal paixão. Os planos, a casa de praia, filhos, tudo foi abruptamente decapitado pelo surgimento de um raro tipo de câncer que rapidamente se alastrou pelos órgãos vitais de seu amado. Segundo a melhor medicina, não havia mais nada a ser feito além de se entregar dignidade e anestésicos.

-          - Adriano, nem as contas consigo mais suprir. As prestações do apartamento se acumulam, todo nosso dinheiro foi destinado ao tratamento. Deveria estar ao lado de meu marido nesses últimos dias e me vejo obrigada a colocar uma enfermeira durante o dia, para cumprir o mutirão. Está difícil, muito difícil.
-          -     Olha, se for dinheiro o problema para se tentar uma alternativa, eu lhe empresto. Melhor, lhe dou! Aprendi a te admirar como profissional, mas acima de tudo você e Jorge são amigos queridos. Gostaria de ajudar.
-         -   Eu agradeço. Mesmo. Mas o que você realmente pode fazer por mim é segurar as pontas lá no escritório. Me conseguir mais tempo com o Jorge.
-            - Claro, Marília...o que for preciso.

     O carro para em frente ao prédio da advogada que parece não ter forças para abrir a porta e descer. Adriano, que até então tentava não expor seus sentimentos totalmente, a fim de não agravar a delicada situação, já deixava algumas lágrimas escorrerem, sorrateiras.

Marília então salta do veículo, contorna o carro e vagarosamente sobe as escadas da portaria para alcançar o hall dos elevadores. O jovem jurista não consegue ir embora. Assiste às passadas cambaleantes de sua amiga, descrente de que ela sequer fosse capaz de chegar a seu andar.

A porta do elevador já ia se fechando quando a mão de um Adriano esbaforido interrompe o mecanismo:

-          -   Marília, seja objetiva...você tem fé?!
-        -    Quê isso Adriano, o que aconteceu?! Você está maluco?!
-          -   Apenas responda, você tem fé? E mais, confia em mim?
-       -      Bom nunca fui uma pessoa religiosa ou de fé, na acepção da palavra.
-      -       É que talvez haja uma saída para o Jorge.
-       -    Como assim?! Você está me deixando mais nervosa ainda, se é que isso é possível. Do que você está falando, droga?!?!?!?
-          -   Tome este endereço e esteja amanhã às 20:00hs neste lugar. Não se atrase nem um minuto. Confie em mim! – disse o advogado sênior, entregando um pedaço de papel nas mãos da aflita mulher, para logo depois bruscamente soltar a porta do elevador, que seguiu seu impassível curso vertical.

O apartamento possuía a densidade de um mausoléu. É como se a morte vivesse ali também. Marília cuidadosamente tira seu sapatos e chama pela enfermeira a fim de dispensá-la de sua trágica missão. Lhe paga a diária, a leva até a porta e se despede com carinho, como se reconhecesse o valor de seu trabalho.

Finalmente entra em seu quarto com todo o cuidado, a fim de não despertar Jorge. Imaginou que pelo menos em seus sonhos, o marido ainda se visse gozando de saúde e vitalidade. A mesma que até pouco tempo atrás, possuía em abundância.

Tomou um rápido banho, comeu algo mesmo sem fome alguma e se deitou, tentando se refugiar em seu cansaço. Por alguns instantes se lembrou da pergunta enigmática de Adriano no elevador. Finalmente, vencida pelo sono, se juntou saudável a seu marido, em sua inconsciência abençoada por Morfeu.

Capítulo II

Era sábado e o mutirão só duraria até o meio-dia. As duas horas que faltavam para o encerramento do expediente não preocupavam a advogada. O que a angustiava era o que a aguardaria às 20:00hs. Adriano não se dirigira a ela naquela manhã, e também não pudera. O coitado se encontrava assoberbado e, com certeza, tinha lá suas cruzes para carregar.

Ao meio dia em ponto, Marília já corria para casa na expectativa efêmera de encontrar Jorge mais disposto, sem dores ou depressivo. Isso seria tão maravilhoso quanto improvável, mas a esperança sempre foi uma faca de dois gumes na história da humanidade.

- Jorge, amor! Cheguei, trouxe uns doces, aqueles de que você tanto gosta!

Como não obteve resposta, aflita, passou a rapidamente vasculhar os aposentos. Encontrou Jorge sentado no chão do quartinho de empregada, chorando copiosamente enquanto remexia uma caixa com fotos antigas. Fotos onde aparecia surfando, bronzeado, risonho e imortal. Algumas gotas de sangue manchavam seu antebraço em decorrência da retirada inapropriada da medicação intravenosa.

Marília não disse uma palavra. Se agachou e abraçou o outrora Hércules, com a ternura possível apenas dos que amam sem limite. O ergueu com cuidado, o levando novamente para a cama desfeita. Desolado, o marido se vira e diz:

-      -  Por quê eu, Marília? Não fui boa pessoa? Tenho apenas 28 anos. O que será de você? E as contas?

        E desatinou a chorar, inconsolável...


      -  Tudo o que sempre quis era que você finalmente engravidasse e que conseguíssemos um dia comprar uma casinha de praia para fugirmos de tudo nos fins de semana. E agora me vou embora, derrotado...
-     - Jorge, não pense nisso, por favor. Estou aqui e aqui sempre estarei para você. É só o que importa agora.

O coquetel de drogas torna a fazer efeito e Jorge é quase que imediatamente catapultado à seu mundo entorpecido. A tarde demora a passar como se o tempo também estivesse moribundo. Marília lê um livro qualquer, sem guardar qualquer informação, pois para ela não faz qualquer diferença.

Às 19:20 a campainha toca estridente. É a enfermeira para rendê-la. Marília já está pronta faz tempo. Não sabe bem porquê. Um misto de tensão e inesperada credulidade percorre sua espinha. Pega as chaves do carro, um casaco leve, documentos e sai. Só leva isso e um fiapo de esperança, que parece pesar dez quilos.

A distância é pequena até o destino. Chove torrencialmente e Marília é parada na guarita do condomínio de luxo, onde informa o número da casa que Adriano lhe passara.

-        -    Boa noite, senhora. - se apressa em dizer um solícito vigilante, saltando de seu posto.
     -  Boa noite. Meu colega de trabalho, o Sr. Adriano, me passou esse número e me disse que seria esperada.
-        -    Pois não. Dona Marília, né? Sim, pode entrar, a casa é da mãe do seu Adriano.

Foi a primeira surpresa da noite. Isso só aguçou a sua curiosidade que agora atingia um nível quase insuportável. Estacionou o carro em frente à mansão e agora procurava atabalhoada, um guarda-chuvas nos porta-trecos do carro. Decidiu deixar pra lá e percorrer os poucos metros pegando um pouco de chuva, apenas para ver se a água gelada na cabeça lhe traria algum esclarecimento ou despertar.

Algumas batidas na porta de madeira e uma gentil e gorda senhora apareceu silenciosamente. Sorrindo e com ternura, lhe ofereceu a mão, dizendo:

-          - Ora, ora, entre, menina bonita! O mundo está acabando aí fora!
-        -   Com licença, disse Marília, sem jeito.
-          - Você gostaria de um chá. Faltam ainda dez minutos para às 20:00hs.
-       -   Não, muito obrigada. Acho que não conseguiria beber. Estou bem nervosa. Adriano não me contou nada, além do fato de que deveria estar aqui nesse horário e que confiasse nele.

A senhora então sorriu mais uma vez e disse:

-         -  Adriano não disse mais, porque não sabe mais para dizer. Mas ele conhece alguém que sabe. 

E continuou.

-         - Peço o obséquio de, antes de entrar no recinto para onde será conduzida, tirar os sapatos e, por favor, não cruzar os braços enquanto lá dentro permanecer. Não se assuste ou se impressione. Garanto que nada de mal irá lhe acontecer.

      E então, com um gesto quase maternal, a gentil senhora novamente tomou a mão de Marília a levando por um longo corredor até os fundos da casa. Um pedaço de madeira cravado com uma enorme faca se encontrava embaixo do batente, guardando espaço apenas para uma pessoa entrar por vez.

-       - Pode ir, menina bonita. Não tema e não se esqueça dos sapatos. - disse a senhora, para logo depois adentrar em algum aposento qualquer e desaparecer.

Marília nunca tinha ido a nenhum lugar parecido. Não era afeta a igrejas, centros espíritas, ou qualquer coisa similar, e o que era curiosidade e tensão rapidamente se transformou em medo.

Tirou os sapatos, se lembrou de descruzar os braços e, mesmo de fora, notou um forte odor de alfazema emanando do pequeno recinto que agora se preparava para descortinar.

Ao entrar notou algumas velas, um pequeno santuário com imagens que não lhe eram íntimas, um minúsculo banco de madeira, alguns objetos de barro, duas ou três garrafas de cachaça barata e um cinzeiro que portava um charuto ordinário. Nada disso realmente a afetara, pois tudo passou a ser secundário quando viu, virado de frente para o canto de uma parede oposta, um velho, totalmente vestido de branco, agachado caricaturalmente, parecendo se encontrar em um singular momento de oração.

Marília não conseguia distinguir o que a figura dizia. Não conhecia aparentemente o idioma. Pensou se tratar primeiramente de uma variação ou distorção do francês, ou algum dialeto como o creole. A verdade é que isso pouco importava naquele momento.

Repentinamente o senhor, ainda olhando para o chão, levanta e diz enigmaticamente à Marília:

 - Sem fé “cê” não tem nada...

Marília permanece em silêncio.

-          - Teu marido também não tem fé. “Cê” vai ter o suficiente por ele?

A pergunta a deixou em tábula rasa, por alguns instantes.

-         -  Acho que tenho...

O velho se virou velozmente de frente para ela e disse ríspido:

-        -    “Acho” não é o bastante.

Ao ver o rosto do “ancião”, Marília precisou se escorar na parede do cômodo. Não conseguia respirar e não conseguia concatenar um pensamento que fizesse sentido. A figura que se movimentava lentamente, andava com dificuldade e apresentava um cristalino problema em sua coluna, era o próprio ADRIANO.

Seu rosto, no entanto, estava impressionantemente mudado. Sua boca torcida, sua pele claramente envelhecida e seus olhos azuis, agora eram castanhos e guturalmente dilatados.

-         -   A-a-a-adriano? Perguntou Marília, catatônica.
-          -  Yaaaaahhhhaaaaaaaahhhhaaaaa!!!!!! - riu interminavelmente a “entidade”.

Disse então em seguida:

-          -  Adriano não está aqui. Mas eu estou com ele há 29 anos. Desde de que ele nasceu. Isso é tudo o que “cê” precisa saber a respeito, “filhota”.

E continuou...

-         -   “Cê qué” cura pro teu homem, filhota?!
        -  Sim, o Adriano te disse?!
        -  Não careceu...
        O que eu queria mesmo é alívio, porque eu sei que cura não há. Os médicos são unânimes.
-          -  Yaaaaaaaaaaahahhahahahahaha!!!!!

O velho então pegou a garrafa de cachaça, bebeu metade dela de um só gole. Catou o charuto com a outra mão e deu três longas baforadas, para só então dizer:

-         -   E “voismicê” acha que eles sabem tudo, né?

Nesse momento, Marília tentava racionalizar como uma pessoa que nunca bebeu uma gota de álcool e que chegou a quase a se demitir no trabalho pela política de liberar o fumo adotada pela firma, conseguiu beber quase um litro de pinga vagabunda de uma tacada apenas, fumar um fedorento charuto de padaria quase inteiro, e se manter incólume.

-          -  Filhota não tem fé. Tem fé apenas nos homens. Mas parece que os homens não podem salvar o homem da doutora. Mas se te disser que o velho “Veludo” aqui, pode?

A entidade dividia naquele momento, momentos de risos e seriedade, o que tornava tudo apavorante para Marília.

-          -  Veludo não estudou em escola chique. Mas veludo sabe que tem coisa que não se ensina lá...
-       -     E o senhor pode de fato curar meu marido?
-      -  Curar? Posso mais. Posso fazer o filhote voltar a ser exatamente o que era. Te interessa isso? É suficiente, filhota?

Talvez pela porcaria da esperança, talvez por desespero, talvez por não haver outra saída, Marília passou a acreditar naquela figura singular. Não sabia explicar. Via seu antigo amigo Adriano naquele corpo torto, naquele idoso coxo, naquelas roupas largas. Era Adriano, mas não era. Era uma entidade sombria, mas também era o bonito e jovem advogado que na noite anterior lhe dera uma carona, ouvira suas lamúrias, vestindo seu terno de grife. Não conhecia “Seu Veludo”, mas a Adriano ela confiaria tanto sua vida quanto a de seu marido.

-          -  Sim, é. Respondeu decidida.
-         -   Filhota tem mesmo fé “pra” dois? Não tô tratando com o “filhote”.
-        -    Tenho, sim senhor...
-          -  Então eu vou curar teu marido. Mas tem um preço.
-          -  Não me importa o preço, eu pago. Eu vendo o apartamento, o carro, peço dinheiro emprestado.
-          -  Voismicê quer que eu bote “cê” pra fora agora?!?!?!?! – vociferou Veludo com uma agressividade tão grande e com uma voz tão peculiar, que convenceu Marília definitivamente que apenas aquele corpo era de seu amigo.

O Exu dispara então:

-          -  E o que faria com dinheiro em meu mundo? Essa cachaça barata me basta. Bastaria para vosmicês, aqui da terra? Filhote e filhota tem tudo mas não tem saúde. Nem tudo é dinheiro. Seus doutores ainda não aprenderam isso?
        -   Desculpe, seu Veludo. Estou desesperada, não sei o que pensar, não sei como agir.
-        -    Filhota diz que tem fé pra dois. Tem amor pra dois também? Você paga por dois?
-       -   Seu Veludo, abdicaria de tudo pela saúde de meu marido. Tenha certeza disso. De tudo.
     -  Então está feito. Seu marido vai ficar de pé e quando se for um dia, não terá a mão de Veludo no “causo”. Veludo não tira a vida que salva. Mas “cê” vai ficar com uma conta para pagar. E ela vai ser cobrada um dia, filhota. Só de ti.

Dito isso, o Exu tomou novamente uma garrafa de cachaça em uma das mãos e desta vez deu um gole curto. Escolheu uma pequenina moringa de barro que estava em um dos cantos do quarto, e cuspiu a bebida lá dentro. Acendeu um novo charuto, o tragou ferozmente e disse algumas palavras ininteligíveis. Suspendeu a tampa da moringa, soprou a fumaça em seu interior e agilmente, em um só movimento, a cobriu novamente, para por fim emanar uma risada sobrenatural.

-          -  Dê isso a teu homem hoje mesmo. Se for preciso o acorde.
-       -     Mas é só isso?

  O Exu sorriu de soslaio e disse com desdém:

-          -  Se Veludo colocar um rótulo e te der uma bula, você vai achar que vai funcionar melhor? Filhote está tomando vários assim mas você está aqui, não?
-  Com as mãos trêmulas Marília fez menção de pegar o pequeno recipiente das mãos de Veludo, mas justo quando ia fazê-lo o Exu se antecipou e, com um golpe certeiro, segurou firmemente no pulso da advogada. Então, olhando vitreamente em seu olhos, disse:

-       -     “Darei dois a ele e tirarei dois de ti!”

Após isso, soltou o pulso de Marília e entregou serenamente o frasco, fazendo uma última recomendação:

-          - Filhota não vai mais me encontrar até o momento do pagamento. Saia do meu quarto de costas e vai em paz.

A entidade se voltou então para a mesma parede onde se encontrava no início, se posicionando de cócoras para uma nova saraivada de orações. Marília se retirou conforme lhe fora pedido, munida do pequeno frasco. Lívida. Muda.

Passou alguns minutos no corredor adjacente ao quarto esperando pela mãe de Adriano, mas ao perceber que ninguém viria, retornou pelo mesmo caminho por onde entrou, ganhando o jardim externo e em seguida a calçada onde havia estacionado seu carro.

No curto trajeto de volta para a casa, Marília tentava infrutiferamente avaliar em sua cabeça acostumada ao raciocínio prático treinado pelo ofício, a experiência que viveu. Tudo parecia um devaneio. As feições e maneirismos distorcidos no corpo de Adriano, o ambiente mágico e “sui generes” que vivenciou, a dicotomia entre o que acreditava e o que precisava, a partir de agora, acreditar.

Marília inseriu a chave na fechadura e com ansiedade adentrou no confortável apartamento. Sem muito pensar ou sem efetuar as suas comezinhas abluções noturnas, foi direto ao quarto onde se encontrava Jorge, que jazia absolutamente inerte. Segurando a cabeça do marido e lhe tapando o nariz, deu um jeito de fazê-lo tomar o conteúdo do potinho entregue por Veludo. Foi a primeira vez, em muito tempo, em que se permitiu não agir com paciência ou delicadeza. Queria que a noite terminasse. E mais do que isso...que outro dia começasse.


Capítulo III

Ao acordar, ainda de olhos fechados e com um movimento natural, Marília buscou as costas do Marido, em um ato que traduzia quase um década de intimidade e afeto. Para sua surpresa não o encontrou. Isso não acontecia desde que Jorge fora diagnosticado. Marília pensou no pior e olimpicamente saltou da cama já chamando por Jorge.

-         -   Jorge, Jorge! Meu amor, onde está você?!

Para sua surpresa, o marido se encontrava fazendo café da manhã e absolutamente disposto. Havia tônus em sua pele, um que Marília pensava que não mais iria ver.

-          -  Eita, meu bem! Calma, só estou fazendo uns ovos. Ainda não morri. – disse sorrindo.
       -    É que...
       -   É que o quê, Marília? Me sinto magnífico. Eu sei que é estranho, mas fazer o quê? Não sinto dores ou enjôos. Nem me lembro quando foi a última vez em que tive fome assim.

Marília gelou. Sim, ela queria acreditar, mas daí a acontecer é outra história. Precisava se convencer. Precisava ter certeza de que algo mudara. De que suas esperanças e experiências da noite anterior não foram em vão. De que havia algo a mais do que uma coincidência em um dia bom, no meio de tantos ruins.

-            -  Amor, se eu te pedir uma coisa você faz?
        -   Bom Marília, acho que o tanto que você tem passado, não posso lhe negar nada.
       -  Eu sei que para você deve ser um sofrimento enorme, mas você se incomodaria em ir ao hospital para fazer um exame simples e conversar um pouco com o Dr. Felipe? Sei que ele está de plantão hoje.
     -  Mas amor, não seria melhor passarmos esse dia juntos e bem? Não teremos tantos outros assim, e essa é a realidade. Dr. Felipe já disse tudo o que tinha para dizer e, cá para nós, deve ter sido horrível para ele. Cuida de minha família há mais de 40 anos. Dê um pouco de paz ao homem, vá?
      -   Por favor, Jorge. Preciso disso. Eu vou ligar e avisá-lo de que estamos indo.
     -   Ok então, Marília. Se você quer estender o sofrimento, seja feita a vossa vontade. Me deixe pelo menos terminar o café, estou faminto.

O médico já aguardava o casal na entrada do hospital com uma cadeira de rodas separada para Jorge. Apesar da fidalguia habitual, lhe fora impossível esconder a surpresa ao perceber Jorge chegar tão disposto ao hospital, andando normalmente e sem sequelas oriundas de uma moléstia letal.

-          -  Vejo que está animado, hein Jorge? Que beleza!
       -  Pois é, acho que foi o café. Faz tempo que não tenho tanta fome e que me alimento normalmente, sem sentir nada.
        -  Sei...vamos entrar, por favor. Vamos ver como você está

O casal fora então levado a um consultório onde Jorge começou ser examinado de forma padrão, em um mero procedimento clínico. Após dez minutos de apalpações, medições e perguntas rotineiras, Felipe faz um pedido estranho:

-          -  Jorge, você se incomodaria de me deixar alguns minutos a só com a sua esposa? Talvez precise mudar a medicação e gostaria que você, enquanto isso, fosse entregando sua documentação na recepção. Vou interná-lo para exames. Mal não fará.
     -   Mas o que houve, Dr. Felipe? Diga, eu sei que vou morrer, estou em paz com isso. Os procedimentos legais possíveis de serem tomados, já os foram.
          Jorge, confie em mim. Preciso de novos exames. Jamais pediria se não julgasse que fossem absolutamente necessários.
-          -  Claro, sem problemas. E a bem da verdade, o que é um peido para quem já está cagado, não é mesmo? – e riu sozinho, meio sem graça.

A piadinha escatológica mais surpreendeu pelo súbito humor de um canceroso terminal do que a lógica contida em suas premissas. Assim que Jorge se retirou da sala, Dr. Felipe se virou para Marília e disse:

-        -    Não sei como explicar, Marília. Mas os exames de toque e consistência, bem como todas as medições que fiz estão normais.
-         -   Como assim, Dr. Felipe?
-          -  Ué, é como se tivesse examinado uma pessoa saudável na casa dos 30 anos.
-          -  Mas você pode estar enganado, é claro?
-          -  É evidente que sim. Mas é justamente por isso ele vai ficar internado e repetir todos os exames que eu julgar necessário. Lhe peço desculpas, mas não tenho muito a acrescentar além disso. Não quero lhe dar falsas expectativas, mas com certeza o quadro indica uma mudança positiva.

Os dois deixaram o consultório e Marília foi até o marido para lhe dar uma breve explicação sobre os procedimentos que seriam adotados. Apesar da contrariedade, Jorge não queria negar à coitada da esposa, mais uma dose de esperança. Ficaram então de se encontrar no dia seguinte, quando teriam informações mais precisas sobre o que estaria acontecendo.

Marília saiu do Centro antes das 17:00hs, a fim de tentar evitar o trânsito no Aterro do Flamengo e Copacabana. Queria chegar logo ao hospital, queria que tudo fosse verdade, queria ter a certeza de que não estava vivendo um sonho.

Após alguns minutos de espera, uma atendente lhe encaminhou a uma sala de conferência onde se encontravam além do Dr. Felipe, mais uma equipe de pelo menos meia dúzia de médicos, de diferentes especialidades. Marília se sentou, curiosa.

-          -   Marília, repetimos todos os exames de seu marido.
-          -   Sim, e?
-         -   Bom, não sabemos como explicar. Essa sala reúne os melhores médicos que conheço no estado e todos eles possuem décadas de experiência...
-         -   Dr. Felipe, por favor! Você pode me dizer o que está acontecendo?
-         -   É que...
-         -    É que, o quê?!
-         -   É que seu marido não está doente.
-          -  Como assim? Ele melhorou? Vai ficar bom?
-         -  Não, Marília. Ele não pode ficar bom de algo que não possui. O que quero dizer é que não há sinais do câncer. E mais, não há sinais de que ele jamais o tenha tido.
-        - Esperem, vocês estão me dizendo que meu marido está são e não precisará mais de nenhum cuidado?
     Marília, é evidente que vamos fazer o acompanhamento padrão, mas a única alteração que encontramos em seus exames é claramente proveniente das drogas que “nós” receitamos. Da medicação prescrita em si. Seu marido está forte como um cavalo. Teoricamente poderia conceder um atestado para exercícios físicos em uma academia.
-          -   Não é preciso dizer mais nada. O fato é que vocês não possuem uma explicação lógica para o caso. Simples assim.
-          -  Gostaria de deixar claro, de pronto, que se você se sentir compelida a acionar judicialmente o hospital, nós entenderemos. Fazemos entretanto a ressalva de que é preciso que você tenha em mente de que isso é tão estranho para nós quanto para você.
-          -  Não haverá processo, Felipe. Fique seguro disso. Só quero seguir a minha vida. Tenho certeza de que Jorge também.

Capítulo IV

-             - Vamos Marília, caramba! Assim vamos chegar após às duas em Búzios!
-          -  Calma Jorge, você acha que é fácil andar com esse peso extra na barriga? Ter que conviver com enjoos diários?
-           -  Quanto aos enjoos você sabe que sim, meu amor.
-          -  Eita Jorge, dois anos já se passaram, deixa isso para trás. Você não tem nem unha encravada desde lá.
-         -   É verdade, você tem razão. Mas peso extra eu levo faz mais de dez anos, porque você é uma mala!
-         -   Seu bobão!!!!! Gravidez é assim mesmo, tem que aguentar!

O dia estava lindo e após um par de anos pródigos, o casal conseguira realizar seus maiores desejos. Uma casa de praia e um dia finalmente Marília engravidara. Não havia resquício de doenças ou dos incríveis acontecimentos que se sucederam em um enigmático e chuvoso sábado à noite, dois anos atrás.

Marília nunca contou nada a ninguém e logo após a “cura” de Jorge, ela foi convidada para trabalhar em um escritório na Barra da Tijuca, perdendo quase todo o contato com Adriano. Em todas as vezes em que, brevemente se falaram, o assunto nunca veio à tona. A vida parecia valer mais do que antes. Marília hoje era uma pessoa de fé. Mesmo não sabendo bem o que significava aquilo ou para onde direcionar sua fé.

A estrada estava agradável, o rádio tocava uma antiga música dos anos 80 e Jorge fingia dublar o cantor, causando risos em Marília, que por sua vez, fazia uma pequena lista mental do que precisava comprar para a casa e para os convidados que passariam o fim de semana no balneário.

De súbito o carro perde a direção, atravessa a pista e bate de frente com uma caminhonete no sentido oposto.

Tudo fica turvo. E depois preto. Como breu.

..........................................................................

-          -  Marília...Marília....você consegue me ouvir? Por favor, com calma...siga o meu dedo com os olhos.
-         -   Errr...Dr. Felipe?
-         -   Sim, Marília...sou eu.
-          -  O que houve, onde está o Jorge?! Meu deus, onde está o Jorge? O que aconteceu?
-         - Calma Marília, você ficou em coma por mais de uma semana. Teve um edema enorme na cabeça, além de múltiplas fraturas e lesões internas. Chegamos a temer pelo pior. Mas agora você está fisicamente estável.
-          -  Que se dane Felipe, onde está o Jorge, me diga pelo amor de deus?!
-          Marília, infelizmente o Jorge faleceu.
-         -  Como assim, faleceu?! Ele estava do meu lado, bem...vivo! Meu deus!!!!!! E minha gravidez, aconteceu algo?! Me diga Doutor, me diga!
-          -  Marília, se você continuar nesse estado terei que dopá-la e não quero fazer isso. Você precisa ser forte nesse momento. Não há outra solução. A sua gravidez foi interrompida. É uma pena, mas tivemos que fazer um procedimento emergencial de curetagem. Não havia outra solução em virtude das suas lesões.

Aos poucos Marília foi se dando conta do que havia acontecido e até mesmo onde se encontrava. Tinha sido transferida para o mesmo hospital onde Jorge outrora se tratou e foi dado como curado.

-          -  O enterro já ocorreu, não é mesmo?
-      - Sim Marília, a família não podia esperar mais e, sinceramente, não sabíamos quando você se recuperaria.
-         -   Me diga Dr. Felipe, e seja honesto...o Jorge sofreu? Se machucou muito?
-       -  Marília, o Jorge teve um infarto fulminante. Percebemos claramente isso porque ele não tinha um arranhão sequer. A batida atingiu apenas o seu lado do carro. A sua morte foi absolutamente natural, se fosse outro e tivesse um infarto daquela intensidade, teria o mesmo destino. Ele se foi em paz. Aguarde que vou pedir à seus pais que entrem, eles estão ansiosos para estarem contigo.

Marília lembrou então imediatamente do antigo trato com Seu Veludo. Lembrou também do que sempre buscou esquecer. Das palavras ditas pelo Exu ao fim do encontro: “Darei dois a ele, tirarei dois de ti”. Atinou que dois anos se passaram e a dívida enfim estava sendo cobrada. Ela perderá o filho, mas faltava algo. A entidade prometera não ter nenhuma influência na morte de Jorge e ela sobrevivera? Um pressentimento nefasto adentrou sua mente e Marília se apressou a perguntar a Felipe, que já deixava a sala:

-        - ...e o bebê...ele sofreu?

O médico pareceu surpreso com a pergunta e após uma pequena pausa para pensar, respondeu...

-         -   Desculpe ter que lhe dar mais está notícia trágica, mas pela pergunta acho que você ainda não sabia. Eram “bêbes”. Você estava grávida de gêmeos, “filhota”. Agora descanse que seus pais já vêm.

Uma lágrima solitária correu no canto do olho de Marília enquanto um forte cheiro de alfazema subitamente tomou o ar do quarto do hospital.


Hpcharles


P.S.: Texto escrito a pedido, especificamente para o "Mês do Horror"do Tiny Little Things.
P.S.2: Desculpe-nos pela diagramação e justificação do texto, mas a ferramenta do blogger não é nem um pouco amigável ao Word. 
<< >>