O Gigante (por Hpcharles)




É madrugada. Pouso minha bagagem sob o batente da porta. Uma mala é de roupas e outra é de derrota. Olho para o quarto vazio e me sinto culpado. Não que alguém tenha assim me apontado. Não foi preciso.

Confiro meu passaporte, conto o dinheiro no bolso, faço as abluções pertinentes à viagem e sento uma última vez à cama onde tantas vezes me deitei, dentro da casa onde nasci, localizada no país que agora deixo.

Incontáveis as vezes que aventei sair de minha terra. Não por não amá-la, mesmo que assim alardeasse. Pindorama, lar do bom futebol, do carnaval insaciável e da malemolência inevitável. Esse é o produto vendido. Mas quem poderia me culpar? O mais radical dos nacionalistas me daria razão em algum momento.

Como encontrar arrimo e incentivo em uma nação que é vista como o oásis do jeitinho, do “leve vantagem em cima dos outros”? E a prática se fez verbo. E o verbo se fez ordem. Essa maldição se impregnou no cotidiano da população a ponto de todos acharem normal e comezinho, o que deveria ser vil e repugnante. Não quero mais isso.

Não há herói algum, do Oiapoque ao Chuí, que vá condenar quem um dia encheu os pulmões para gritar, “eu me vou embora daqui”?! Será que alguém, em sã consciência, iria cobrar brasilidade de quem só quis o básico e nem o básico teve? De quem buscava apenas uma nação com serviços de saúde com atendimento digno, ao arrepio da verdade putrefata, esquecida nos corredores dos hospitais públicos? Ou que implorou por educação bastante para consignar um resquício de cidadania, vez que sem educação, não há cidadania, mas apenas a ilusão de que ela existe? Ou então de quem desejou um simples fiapo de segurança pública para sair de casa e ir ao trabalho sem temer ser assaltado e tomar um tiro na cara?

Qual seria o Hércules que julgaria quem não mais suporta - apesar de trabalhar mais horas por dia do que recomenda a melhor medicina - chegar ao final do mês contando os centavos para pagar apenas uma passagem? E saber ainda que o ticket infernal lhe dá direito não ao mínimo conforto, mas ao contrário, impõe o esmagamento compulsório, em um ônibus decrépito ou em um vagão claustrofóbico qualquer? Nem o mais bravo dos espartanos chamaria tal pessoa de covarde ou desistente.

Mas algo aconteceu no instante derradeiro. Por intuição abro o jornal do dia, o último que receberia antes do cancelamento, relíquia guardada para o avião. Subitamente algo muda em mim, após alguns parágrafos. Atônito, ligo o computador outrora embalado e vejo o que precisava ver. Está confirmado. O improvável aconteceu. O gol do campeonato aos 45 minutos do segundo tempo. E, ao que tudo indica, coincidentemente, foi um tiro na cara e alguns centavos que empurraram a bola para dentro. Parece que o leite transbordou. E foram os mesmos centavos encantados que tantos usam para andar nos rabecões coletivos, que fizeram o copo encher. E ele encheu...

Encheu porque tudo tem limite. Até o que parecia não ter. Encheu porque sobreviver já é difícil, mas sobreviver calado é insuportável. Encheu porque sobreviver calado é insuportável, mas sobreviver calado e apanhando é impossível.

E paga imposto e não reclama. E toma madeirada nos dedos e solas dos pés. E toma spray de pimenta para botar nos olhos e na salada, com o balsâmico vinagre proibido. E não filma, porque te dou um tiro na cara. E o tiro saiu. E o tiro foi filmado, entre tantos tiros não filmados, mas desferidos.

A diferença é que esse não acertou apenas a órbita de uma jovem repórter. Acertou o peito contido de milhões. Pois que fiquem com meus vinte centavos. Eu não quero mais esmolas. Quero meu país! Não vão me dar? Eu tomo! Nós tomamos, vós tomais! Como Pedro, eu fico. Agora pétreo. Agora pedreira.

Pela primeira vez em décadas eu desfiz as malas que sempre estiveram prontas dentro de mim. Abri a janela e vi um orgulho voando baixo, um que julgava extinto. Alguém grita no meio da rua, “é tudo bobagem, fiquem em casa, não dará em nada, fogo de artifício”. Faço ouvidos moucos, duvido e arreganho os dentes. Já me disseram isso antes e eu acreditei. Eles me disseram isso. Eles!

Me disseram isso enquanto aprovavam leis na calada da noite, quando se mancomunavam sorrateiros, como os ratos que são. Me disseram isso com voz melíflua, ao pedirem seus votos digitais e fazerem promessas surreais, que nunca se cumpririam. Foram eles que me disseram que era bobagem.  

Foram eles que, ardilosamente, empurraram goela abaixo, a religião anestesiante, a novela inebriante, que sussurraram que era impossível. “Gritem o gol, sambem o samba, pois é a parte que vos cabe deste latifúndio”, gargalhavam soberanos. Vamos Brasil, fazemos em 36 vezes a geladeira na “linha branca”. É ou não é um bom negócio? Miseráveis...

Nunca souberam quanto valem os 20 centavos. Mas irão aprender. E quem irá ensinar está com sangue nos olhos. Os mesmos olhos ardidos pelo spray fascista, perfurante, brucutu.  Pálpebras molhadas de sangue, férreas. Supercílio aberto pela bala de borracha, atirada pela arma de metal, disparada pela mão de carne e fel.

Eles não atiraram na repórter. Atiraram em mim, porra! Atiraram em qualquer um que não aguenta mais o sorriso cínico dos plenários, que rejeita a desigualdade que separa as almas, que alimenta a fome que nos soca a boca com os doces pendurados nos retrovisores. Qual é o limite? 

Eu pressenti, juro. Estádios nababescos, índios despejados (desde 1500 o são), licitação do “Maraca”! “Aha, Uhu, o Maraca é nosso”! A Copa do Mundo é nossa! A venda dos ingressos malditos é nossa! Nossa, é o caralho! É deles, isso sim!

Gol do Neymar, gente! Gol do Neymar!

Desculpe, não ouvi. É que caiu uma bomba de “efeito moral” perto de mim.

Pois eu digo o que é bomba de efeito moral. Bomba de efeito moral é ver o teto do Congresso repleto de gente, e quando digo gente, me refiro ao povo e não a vampiros travestidos de deputados, com suas barrigas de avental e unhas pintadas com esmalte incolor, palitando os dentes depois de aprovar mais alguma desnecessidade que só importa a eles.

Bomba de efeito moral foi navegar em páginas e páginas, oceânico, e ver que um gigante passou nas maiores avenidas de nossas maiores capitais. Binário e indestrutível, suas pegadas não puderam ser apagadas pela tinta dos jornais viciados ou revistas prostitutas, muito menos pelas películas cumplices das asnáticas televisões, com seus Big Brothers anabólicos e noticiários caolhos, repletos de anúncios com migalhas para os famintos.

Pergunto de novo e ninguém me responde: qual é o limite?

Boto a cabeça para fora, periscópico. Perto de mim cai mais uma bomba de efeito moral. Não me incomodo, não freio, eu quero é mais. Quero gritar, segurar a bandeira, ela é verde e amarela, varonil, escudo de pano, em meu peito de aço.

Hoje tem passeata e só quero o que me devem. Nada mais. Passe livre, voz e dignidade. Não peço por mim, peço por todos e todos pedem por mim. O chão treme e lá vem o tal gigante. Irrefreável, com pé de anjo e coração de leão. Lhe chamam em uníssono. Bradam seu predicado como se fora espada e lhe entoam hinos e canções de batalha.

Vão me jogar pimenta, devolvo com tomates. Vão me atirar bombas, devolvo com flores. Vão me dar tapa na cara, já os levo há 30 anos. O que mais podem fazer que não tentaram antes? Qual foi o estratagema campeão que não foi derrotado por um movimento social irrefreável?

Pois que tentem. O dia amanheceu diferente, há algo de especial no ar. Sinto o aroma de café coado, ouço passos nas ruas. São meus irmãos, os brasileiros. Eles acordaram comigo do sono calado, hibernado, paralítico. Cara lavada, pão com manteiga e marcham. Atrás deles caminha o gigante. Passada firme, impávido, colosso onipotente. Todos gritam seu nome. E seu nome é Brasil.

The Lumineers - Como manter um sorriso em seu rosto por 50 minutos (por Hpcharles)



Alguns dizem que não se encontra mais boa música sendo feita atualmente. Pois eu digo aos pessimistas que a boa música nunca foi a lugar nenhum. Ela sempre esteve por aí, esperando para ser descoberta.

Esse é o caso dos The Lumineers. A Banda folk americana de New Jersey, mas sediada no Colorado, possui forte influência de "cajun music", muito comum na região da Louisiana. O pessoal deu às caras realmente em 2012 e pouco mais de um ano depois, já emplacou um disco de ouro com o álbum que possui o mesmo nome da banda. A proeza ficou ainda maior quando tal disco entrou na lista dos 10 mais vendidos nos EUA, Canadá e Reino Unido.

A música dos Lumineers é "uplifiting" e afeta seu espírito quase que imediatamente. Cura mau humor, TPM, raiva do trânsito, quiçá unha encravada. O maior hit do grupo é a  canção "Ho Hey", que vai lhe fazer perguntar porque esses caras ainda não estavam morando em seu Ipod. E isso é só o começo, pois o disco inteiro é fantástico. É música para ouvir dançando, pulando como criança. Existe algo de puro, simples e inspirador em suas letras e acordes. Algo com um viço que dificilmente se acha nesse mundo dominado por "Biebers" e "hip hopers" milionários, com seus "blings" no pescoço, dirigindo Bentleys tunados.

A banda usa além do tradicional violão de corda de aço, muito característico na folk music, percussão, bandolim e...violoncelo. Que foda, violoncelo. Para mim a regra é que se tem violoncelo, já está valendo.

Mas chega de enrolar. Vou deixar o vídeo de um curto show dos caras para vocês sentirem a pressão. Ah, e depois que acabarem de assistir, passem aqui de novo para agradecer ao HP por ajudar a colocar um sorriso de 50 minutos em seus rostos.

Vida longa ao The Lumineers.

See ya when i see ya!



E a literatura prevalecerá... (por Hpcharles)



Um país se faz com homens e livros.” - Monteiro Lobato 
Meus filhos terão computadores, mas antes terão livros.” - Bill Gates




Sempre acreditei que a leitura me redimisse. De meus maiores defeitos e de minhas maiores virtudes. Sempre entendi que nunca ficaria sozinho se tivesse um livro comigo. Cheguei até a música e depois escolhi a guitarra, guiado pela literatura. Quem me deu a mão para atravessar a rua e apreciar o cinema da esquina, foram os livros. Sempre os livros.

As influências, todas elas, foram amealhadas com as pálpebras cansadas, muitas vezes em madrugadas insones. As melhores, pois destas me recordo. É claro que meus pais me deram dicas, apontaram o que ler, sussurraram quais seriam os cavalos azarões. Nesse sentido, tive muita sorte. Mas eles também foram influenciados pelos livros que leram. São herdeiros, assim como eu.

Estudei em colégio semi-interno tradicional, exigente à beça. Por lá a leitura se impunha como um chicote e em casa, ele não estalava mais brando no que tange ao português correto ou à nossa escorregadia gramática latina. Me interessei pelos livros antes de me interessar pelas meninas e depois que me interessei pelas meninas, não me desinteressei pelos livros.

Filho de professores de português e literatura, que por sua vez foram filhos de gente que tinha menos do que eles, vislumbraram, antes mesmo de minha concepção, que uma coisa eu teria de melhor. A educação acadêmica.

Nisso, seu rebento não ficaria nada a dever aos “Rockfellers tupiniquins”, em seus nababescos carros de milhares de reais, que param em sinais onde se vende balinhas baratas, retiradas de caixas de papelão amarrotado, oferecidas por funâmbulos esquecidos, mais magros do que o espesso vidro à prova de balas que seus cabisbaixos olhos ictéricos não conseguem atravessar.

Essa seria a crase sanguínea de um projeto de vida transcendental. Poderia faltar tudo, menos a melhor formação. Sempre acreditaram nisso. Cegamente. Do alto da pilha de provas a corrigir, me olhavam deitado no sofá, muito pequeno ainda, lendo as revistinhas em quadrinhos, que alegremente me compravam em bancas de ruas.

Minha mãe me diz, divertida, que eu tinha basicamente três desejos quando criança: segurar na barra do teto do ônibus, ter bigode e ser jornaleiro. Não demorou para que conseguisse relar na parte mais alta do coletivo, mas nunca deixei o bigode crescer e nunca mais me veio à cabeça, a ideia de ter uma banca de jornais e revistas.

Era criança. Mas, à minha maneira, mesmo que inconscientemente, expressava o utópico desejo de viver cercado de gibis e figurinhas. Cercado de informação, de sonhos, de celulose.

Me recordo claramente de, no dia do professor, meus pais voltarem carregados de presentes, brindes e cartinhas, com afetos e afagos para a alma. Percebia aquilo e, ainda muito jovem, achava que eram para mim. Saltava logo quando a porta da sala se abria. Pensava aquilo porque nasci exatamente no dia do Mestre, 15 de outubro. Meus pais, como professores de português, foram inapelavelmente matemáticos. Que cálculo perfeito. Professores com um filho vindo ao mundo justo no dia da profissão que escolheram.

Imagino que isso, em algum momento, lhes colocou um sorriso no rosto. Mas, à revelia de tal loteria, nunca entendi porque jamais me perguntaram se gostaria de ser um professor. Logo eu, que desde as fraldas, perambulava por salas de professores e sentia o cheiro do café na garrafa térmica pousada ao lado do pote com biscoitos. Eu que olhava os boletins, diários de classes empilhados pelos cômodos, que compreendia os fim de semana coalhados de discussões ortográficas e piadinhas internas de timbre acadêmico.

Meus pais, antes de se apaixonarem um pelo outro, se apaixonaram pelo magistério e pela literatura. De certa maneira foi isso que também os uniu, antes mesmo do primeiro beijo. As mãos sujas de giz e de tinta de caneta, vieram antes da aliança.

Mas ainda assim, não quiseram o mesmo destino para o filho. Pelo menos não houve a declamação do desejo comunado com o comezinho incentivo. Por quê? Durante um tempo, não entendi.

Hoje é tudo cristalino. Porque os pais, via de regra, querem para os filhos uma vida mais branda do que tiveram. Porque ao longo de suas próprias vidas trabalharam como escravos. Porque hoje, aos setenta, ainda o fazem. Porque perceberam que vivemos em um país onde a educação é tratada como secundária, à revelia da malandragem, da corrupção e do jeitinho. Porque viram que apesar do esforço espartano, pouca coisa mudou ou melhorou para seus pares. Porque conhecem a profissão e sabem que professor não se aposenta, apenas morre. Foi por isso.

Nos encontramos em uma nação onde o dinheiro, independente da forma como seja obtido, determina padrão, não só o de vida, mas o de valor moral. Que mundo estúpido. Que merda de realidade. Quanta distorção.

Semana passada vi um vídeo da Patrícia Pirota onde ela comenta que chega a trabalhar vinte horas por dia. E na esteira dessa assertiva, se desculpa porque não tem conseguido responder a comentários ou postar com mais frequência, vez que o exíguo tempo que lhe resta é para dormir. Aquilo me fez mal. E pior, como ela ousa se desculpar? Se desculpar por que? Por ser uma heroína e depois de trabalhar como um burro de carga ainda difundir cultura e informação? Me desculpe VOCÊ, dona Patrícia, mas não aceito suas desculpas. 

Com a Tatiana não é diferente, garanto. E quem acha que sou suspeito para falar, paciência. Ônibus, aulas, ônibus, correção de provas, algumas horas de sono. Canso de vê-la gravar vídeos de madrugada, de rosto ainda inchado, para nos contar sobre os livros que leu. Sim, porque se não for isso, não sei onde verei tal programação. Alguém aí poderia me dizer onde, na grade de alguma grande emissora, acessível para o público, existe um programa dedicado a falar de algo tão importante quanto livros, em um país com a educação fodida até os fios de cabelo? Alguém? Não? Ninguém se habilita? Dou-lhe uma, duas, três...

Esse cotidiano não é novidade para mim. Vi isso a minha vida inteira. A remuneração, pateticamente nefasta, é apenas o reflexo da política cultural e acadêmica de nosso país, que desde o golpe de 64, vem sendo repetidamente vilipendiada. Já perguntei antes e pergunto de novo: a quem interessa isto?

Educação capenga, profissionais da área insatisfeitos e política educacional raquítica. E toma de Copa. E toma de Olimpíada. E toma de Carnaval. E toma de novela da Globo. E toma no cu!

É claro que meus pais não quereriam isso para o filho. Por que haveriam de querer? Apesar do amor ao magistério, da paixão pelo ensino e pelos alunos (alunos que aliás, pasmem; hoje são capazes das piores indelicadezas e escatologias em sala de aula), não acalentaram o desejo de que a própria prole seguisse a mesma estrada.

Me tornei advogado sem nunca amar a profissão e, apesar dos revezes e neuras pertinentes à tal labuta, penso que o caminho foi menos árduo. Isso não se deve ao mérito de alguém ou ao demérito de outrem, mas sim ao fato precípuo de que o magistério com seus corolários, faz muito tempo, deixou de ser valorizado em uma terra onde analfabetos funcionais são deputados, senadores e até presidentes. Houve um projeto para isso, entendem? Fica fácil de controlar.

Mas no que concerne a mim não houve jeito, pois o tigre não muda suas  listras. A advocacia aos poucos fica para trás e a literatura, em todas as suas matizes, vai retornando. A leitura sem o cabresto de “tecnicalidades” ou dirigida ao fito de lucro, coloca, enfim, a cabeça para fora da água, depois de tanto hibernar. Existe um coeficiente de poesia nisso tudo. 

Ademais, que espetacular ironia. Me casei com uma professora cuja paixão é falar de livros. O quão legal é isso? Que resgate interessante. Tá, e Freud que se foda, que vá dar mais uma "cafungada" dentro de seu caixão...

E como eu SEI que a literatura vai vencer? É simples. Por dois motivos. Porque não há outro caminho, não há outra fórmula ou atalho. Porque não existe “back up plan” onde a leitura não esteja inserida. Não pode haver. Não um que dê certo. Nenhuma nação se ergue sem conhecimento e ele está, primariamente, nos livros, mesmo que esses livros sejam disponibilizados em fontes difusas, como a internet e afins.

Mas a literatura vai prevalecer sobretudo e principalmente, porque ela é invencível. Não há mal que a política social ou educacional que aqueles “pau no cu” façam lá em Brasília, que impeça a mim, a uma criança ou um a novo leitor desavisado, de abrir um livro e se conectar com uma cidadania ferida, ou parir um pensamento subversivo à essa mesmice de folhetim que impera hodiernamente. Não há lei filha da puta que previna a conexão sináptica que envia uma nova ideia oriunda de palavras escritas em um papel, por sei lá quem, em um local sem importância, em um dia qualquer.

A escrita é o último bastião de pureza nesse mundo. Não existem correntes entre a mão e a pena. É possível se escrever no papel que embrulhou o peixe no dia anterior com um “cotoco” de grafite. E basta isso para fazer o estrago. A história mostra.

Eu sei, pode-se censurar a publicação, pode-se desacreditar o autor, pode-se quebrar os dedos, pode-se viciar a mensagem. Mas não adianta. Já tentaram isso. Não funcionou. Talvez durante algum tempo, mas não para sempre.

Se emburrece a população, se paga mal ao professor, ao difusor da mensagem, se estupra a literatura em “50 tons”, mas ela é indestrutível. Sua natureza é simples e ao mesmo tempo sofisticada. Sempre haverá Tatianas, Patrícias, Julianas e outras tantas professoras e educadores que, ao arrepio do quanto apanhem e de quantas horas trabalhem, vão empurrar a pilha de redações para o lado por alguns minutos e confessar que não há nada melhor do que ler. É realmente uma pena que a política trabalhe contra a cultura e contra a educação e, por via oblíqua, contra a literatura. Mas querem saber? Azar da política.

Pessoas lerão nos ônibus e nos pontos de ônibus, no metrô, na ante sala do médico, na fila do banco, aonde for. Não há política que impeça isso. Ela vem há muitos anos lutando para que isso aconteça e não deu certo. Uma hora o jogo vira. Posso não estar vivo para ver e provavelmente não estarei. Mas é uma questão evolutiva. Inteligência contra burrice, conhecimento versus ignorância. Não vejo os nossos primos primatas dominando o mundo fora da obra de Pierre Boulle.

Provavelmente ainda bebê, fui afetado pelo cheiro do papel. Mesmo quando ainda o rasgava, ao invés de buscar significado para o que nele estava contido. E hoje, toda vez que abro um livro, mesmo os velhos, aquele odor que impregnava minhas narinas, novamente me catapulta a grandes momentos de minha breve existência.

Me recordo então de viagens impossíveis, de personagens espetaculares, de descobertas fascinantes. Me lembro de desfiladeiros transpostos com um salto apenas, de beijos em princesas, de lutas de espada e de comandar naves espaciais nunca construídas fora do papel. Em “fast foward”, dentro de minha mente, viro velozmente as mesmas páginas que me deram consolo e companhia quando foi preciso. Que me encheram o coração de amor e aventura em um domingo à tarde. Que me fizeram ser o que sou hoje, porque também somos o que lemos.

É por isso meus caros, que a literatura prevalecerá. Porque é irrefreável. Porque dentro nós cabem todas as palavras que um dia lemos e que, combinadas, nos entregaram, silenciosas, muito mais do que jamais pedimos e do que jamais sonhamos. A literatura vencerá, porque eu quero que vença. A literatura vencerá porque ela de fato, nunca perdeu. Quem perde sempre, somos nós.
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