Eu ainda tive a sorte de receber cartas. De papel. Com odores amadeirados, letras pintadas à mão, tinta borrada. Caligrafia humana, esforço bípede. Músculos segurando a pena, dobradura de celulose. Carimbo, selo, saliva no envelope.
Algumas me trouxeram boas notícias, afago alfabético, saudade vernacular. Outras me causaram dor, raiva, preocupação. Mas todas possuíam um coeficiente de pessoalidade. Marcaram um momento, despertaram uma sensação mais real do que o rei.
O abrir do invólucro que embala as frases teleguiadas sempre me lembrou a infância de pacotinho de figurinhas, com a vantagem de que não se encontrará o número repetido.
As lembranças de minha angústia de moleque esperando o carteiro são absolutamente cristalinas e cingem minha mente. A alegria pelo recebimento, a tristeza nas mãos vazias vestidas de uniforme amarelo e azul. Sei lá...tinha gente durante todo o percurso. A surpresa tinha marca de poeira e rosto.
Compreendo as necessidades e correrias do mundo atual. Os bytes vem do outro lado do mundo em segundos. Negócios são fechados, notícias urgem por serem transmitidas, torpedos sem pólvora são disparados e raramente não atingem o alvo.
Nada disso é inválido, inútil ou negativo em sua essência. Sinal dos tempos. O mundo mudou, as necessidades mudaram, o dia ficou pequeno, o planeta diminuiu. Mas ainda sinto falta das benditas cartas.
Gosto de olhar o pequeno selo colorido, a cor do papel, de segurar o vestígio material da notícia em mãos. De guardar na gaveta, fechar com a chave, não mostrar a ninguém. De saber que nem hacker pode ler.
Assim como todos, abuso dos SMSs e já digito na velocidade de um adolescente exemplar. Os “e-mails” surgem em abundância em minha “caixa de entrada”. Os “ringtones” separam o joio do trigo. Pessoas “twittam” e o Facebook é quase uma obrigação. Isso às vezes me deixa confuso e, por um instante, penso em diminuir o ritmo, em jogar uma marcha para baixo. Bobagem...sabemos que isso seria impraticável. Tal excesso também impenderia um ato de afastamento da realidade. Não anseio por ser um eremita, só diminuir o frenesi, o ritmo.
Conservo a ablução de passar na caixa de correio antes de sair, assim como mantenho o atávico maneirismo de perguntar ao porteiro se existe algo na portaria que foi esquecido. Quem sabe uma carta de amor, um bilhete de amigos, algo que me devolva à inebriante sensação que tinha em minha infância quando esperava por papel de verdade.
Fernando Pessoa em sua genial e festejada poesia não se esqueceu disso e deixou claro que também escrevia cartas de amor. “Eram ridículas, mas eram cartas...de amor”. Sim, ele não tinha um computador, mas isso não importa agora. O que você preferiria? Receber um “e-mail” de Fernando Pessoa ou uma “carta” de Fernando Pessoa? Há! Eu sabia...
Claro que esses saudosistas parágrafos não se desvencilham da realidade hodierna, mas não dizem que recordar é viver? Pois é, guardo em tinta e papel algumas das fases mais importantes de minha vida. Algumas pessoas já se foram, outras não são mais importantes e de algumas outras, nem me recordo. Mas se tornam visíveis quando leio aqueles manuscritos que requereram, o mínimo que que fosse, alguma dedicação, esforço e tempo. São a materialização de que tais momentos existiram de fato. As cartas os eternizaram de alguma maneira. Isso é muito bom. É Polaroid da vida.
Essas pequenas anotações, formam uma “linha do tempo” muito mais inspiradoras do que a de qualquer interface de qualquer rede social. São só minhas, não há “stalkers” cibernéticos, devassagem de LCD. Eu as coloco lado a lado. A palheta de cores se mistura com o desbotado do tempo. Vintage de ideias, de lembranças, de memórias primatas .
Decido escolher um papel especial e fazer o que prego. Começo a rascunhar algumas linhas para minha pequena sobrinha que agora vive em outro continente. Provavelmente será a primeira carta que receberá em sua curta existência. Talvez hoje não lhe seja tão importante em sua juventude coalhada de sonhos e bichos de pelúcia, mas e daqui a trinta anos, quando já estarei morto ou na guarida da velhice? Que tipo de experiência isso lhe trará?
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O envelope segue na esteira, entre bobagens e folhetos prescindíveis, para ser tornar um dia, com sorte, imprescindível. Talvez o mais importante no entanto, seja ter tirado o remetente da fortaleza binária. Ter baixado a ponte levadiça do castelo de silício. Ter tirado o “plug” da tomada e ainda assim funcionar. Ter, por um momento que seja, enviado calor e não a frieza dos megabytes e, nesse diapasão, lembrar a mim mesmo, que o virtual não pode substituir o real. Não deveria.
Ao arrepio da modernidade a carta seguiu. Me lembro de Pessoa mais uma vez e mais uma vez ele tem razão. “As minhas memórias das cartas é que são ridículas”. Não obstante, são verossímeis, táteis, inexoráveis...
Hpcharles
Maravilhoso!
ResponderExcluirDoce, por soar poético; Sincero, por soar tão verdadeiro.
A narrativa é linda, doce, nostálgica e... na verdade não sei descrever.
ResponderExcluirEu acho engraçado porque, eu tenho 19 anos e nos anos 90 é que surgiu a internet e as pessoas começaram a usar pra se comunicar com familiares e etc. Mas as cartas ainda eram muito usadas ainda. Moro em Pernambuco, numa cidade histórica (Olinda), e minha prima, mais nova, deve ter uns 10 anos, mora no Rio de Janeiro. Com ela, eu uso cartas ainda. Comecei quando eu fui lá pra conhecê-la pessoalmente. E da última vez eu lhe enviei um livro de quadrinhos de Calvin, adesivos, um lacinho de cabelo, e uma carta que eu molhei no café, e ficou amarelada e com cheiro de café. Se não me engano eu ainda perfumei. Escrevi a carta com caneta de pena. Foi algo que eu tinha que fazer porque eu sinto saudade de uma época que nunca estive. Mas eu me decepcionei, quando ela me respondeu em uma carta e perguntou se eu tinha Skype ou e-mail, enfim. E até hoje eu não respondi, não sei porquê na verdade. Eu tenho medo de perder esse contato sabe? E eu procurando alguém assim como eu que goste ainda de receber cartas. Eu espero que as pessoas sejam elas mesmas, que não percam sua essência assim como era há muitos anos atrás.
Sério.Esse cara é um artista.
ResponderExcluirTati, oi, te achei através de um vídeo pelo Youtube sobre os livros do John Green!!! Amei, seguindo você por aqui =).
ResponderExcluir@Juliana_Barnes
http://escritasobreatela.blogspot.com.br/
Olá, HP!
ResponderExcluirTenho 15 anos e cara, só tenho a agradecer por suas palavras sempre sinceras.
Muito obrigado, pois a cada texto seu, eu sinto uma evolução em mim como ser humano. Me sinto mais em paz comigo mesmo.
Abraço!