Enquanto retiro as notas da carteira com o fito de pagar o
procedimento, não consigo deixar de reparar a coincidência quase mediúnica ao
ouvir os primeiros acordes de “Start me up”, primeira faixa do aclamado álbum
dos Stones de 1981.
O rádio toca alto, as pessoas são diferentes de mim e o ambiente não
me é familiar. No entanto, o tatuador, educado, já de luvas para “rabiscar” o
próximo cliente, se permite sair de seu habitáculo para se despedir e, com um
sorriso de canto de lábios, profetizar um “até a próxima”.
Senti que a sentença não era meramente a prática, hoje quase em
desuso, da polidez, mas era sim, um genuíno exercício de prestidigitação.
Em minha arrogância de “cubos lógicos”, penso em soltar uma piadinha
tosca com referência à Mega-Sena e à Mãe Dinah, mas com igual percepção de
cartomante, me contenho e lembro que o sujeito não começou ontem naquele
negócio. Me limito então a me despedir. Mais tarde, veria que a decisão fora
acertada.
Já no restaurante para o almoço, olho o pequeno curativo em meu
pulso como se fosse uma medalha obtida em “Bastogne”. Hoje eu vejo o quão
patético era. Porra HP, um ideograma no pulso? Really?! I mean...really dude?!
Você “tava” pensando que era quem porra?! A Giselle Bundchen?
Tento em vão, encontrar uma justificativa racional para o desenho do
tipo Hello Kitty meets Jaspion. “Sou advogado e não posso fazer algo que
apareça muito”, “é para cobrir com o relógio nas audiências”. Só piora a
questão. Nada pode desculpar ideograma no pulso. Nada.
Mas vamos dar um desconto. Eu fui educado em colégio semi-interno
católico, com mãe conservadora e cresci ouvindo que fazer tatuagem era quase
como usar drogas e ouvir Stairway to Heaven de trás para frente. Tinha que
começar por algum lugar. Mas não deixa de ser um pouco ridículo hoje, ainda
mais quando olho para a Les Paul no pedestal de meu quarto.
Vejo o garçom reparando na bandagem e me apresso em dizer orgulhoso:
“é uma tatuagem”. Ele não responde e me dá as costas com um pertinente ar de
“foda-se, vou cuspir em sua comida”. Eu mereci vai...
Mas eu sabia que o melhor se reservaria para o almoço de domingo.
Sim, minha mãe saberia que tinha feito uma tatuagem, e, apesar de não lhe dever
mais nenhuma satisfação de minha vida, Freud assobiava com desdém em meus
ouvidos.
A primeira “pérola” foi atirada. Mas foi com um estilingue, saca?
“Humberto, seu pulso está sujo”. Fuuuuuucccckkkkk!!!!!
Como assim, sujo?! É uma tatuagem cacete! Tá, é um ideograma digno
de campanha “homoafetiva”, mas não é uma sujeira. Será que tá mal feita? Será
que ela não acreditou que fosse uma tatuagem? Será que foi uma dedada bem dada?
Minha namorada à época ri alto, mas nota que cometeu um erro ao
perceber que olho friamente para o facão separado para cortar o pernil e torno
os olhos à ela. Naquele dia pouco mais falou. Sentiu que ali havia história
A segunda pérola desce minha goela com gosto de TFP. “E quando você
ficar velho meu filho? ”
Sério, nunca entendi essa porra. Ué, quando eu estiver velho, “eu tô
velho, caramba!”. Que se dane a tatuagem! Quando eu estiver velho, acredito que
haverá prioridades do tipo: problema na próstata, dor “nas junta”, catarata,
conversa “inteligente” com os porteiros.
Retruco sem deixar a bola cair: “Olha só mãe, se tiver “encheção” de
saco, amanhã mesmo tatuo uma seringa no pescoço e “I love cocaine” dentro de um
pentagrama nas costas!”
O almoço não foi amistoso, mas foi libertador. Praticamente um mês
depois, eu retornava ao estúdio. E dessa vez o “bagulho” ia ser sério.
O mesmo tatuador aparece com um risinho histriônico no rosto.
Pressinto que ele vai perguntar: “E aí champs, vai fazer uma de homem agora?”.
Que nada, como sempre, cortês, ele me pergunta se já tenho o desenho.
Puxo um tribal que cobriria o lado externo de meu bíceps esquerdo.
“Chupa essa manga mãe!”
Esqueço Édipo por um momento e passo a “aproveitar a dor”. Estranho
né? Pois é. Mas percebi que gosto da “operação”. Me culpo e lembro do David
Beckham que aduziu ao mesmo “prazer”. Tá bom, o cara tinha TOC também, mas vamos combinar que se você tivesse que
ficar ouvindo uma Spice Girl cantar no seu banheiro todo dia, também
desenvolveria uma patologia qualquer.
O sangue é abundante, como é natural nas tatuagens grandes. Não me
assusta nem um pouco. Ponho os fones. A adrenalina cuida do resto. Done! Agora sim, caraio! “É
faca na caveira!”
Saio do estúdio “like a boss” e encerro o problema decidido a comer
no pior “fast food” que encontrar. Ideograma “my ass”! “Abre o pão com a unha
aí irmão!”
Hoje me divirto quando me lembro disso tudo. De lá para cá, mais
três vieram. Não me arrependi em nenhum momento. Me arrependo de muita coisa,
mas jamais me arrependi dessas tatuagens. Na verdade, não consigo sequer me
imaginar sem elas.
Me lembro do fátidico almoço e vejo que a pergunta de minha mãe teve
algum sentido. Oposto, mas teve. Me parece que a velhice, dificilmente seja
dissociada do medo da solidão, por quem quer que seja. Ao olhar meu corpo, vejo
essas cicatrizes calculadas e elas me trazem um grande alento.
Marcaram fases, momentos felizes e nem tão felizes, mas TODAS são
significativas de algum modo. E isso é bom demais. Leio pequenas frases de Tennessee
Willians e Nietzsche em minha pele e vejo que sempre estarei bem acompanhado.
Quer velhice melhor do que essa? Com marcas que me lembram a todo momento de
que o que vivi foi real. Pigmentos traçando citações de meus ídolos. Quando me
for, irão comigo. Solidárias. Leais na dor, agulhadas na alma. Carne viva.
Nesse instante, lembro de “Having a Coke with You” e procuro algum
espaço na cútis. Tem de haver algum lugar para Frank O`hara por aqui. Me visto
e saio.
“E aí dotô, o quê vai ser agora?”
Hpcharles
que texto divertido! e intenso. e foda de bom.
ResponderExcluiragora faça o favor de contar quais são as frases!
Concordo com a Ju... e as frases? rs.
ResponderExcluirAdorei o texto, e tbm carregarei algumas tatuagens na minha velhice!
=)
Esse texto até parece que é meu!
ResponderExcluirQuando fiz minhas duas tatuagens,ouço até meu marido falando:
_ E quando você ficar velha? E quando a gente tiver filhos? Como você vai arranjar emprego?
Depois minha mãe:
_ Só são essas duas né? Você não vai fazer mais nenhuma não?
E a vontade de fazer mais não sei quantas eu quiser gritando dentro de mim: _ vai fala logo pra ela que ainda tem bem umas dez!
E quando fui dar aula. Ensino Infantil V. Aluno olha pro meu braço:
_ Tia, isso ai é uma tatuagem? - com a maior cara de sapeca.
_ Copia a atividade menino - tento desconversar!
Mikaelly
www.mikaelly-andrade.blogspot.com