A Chefe da Repartição





A memória mais antiga que possuo é de minha mãe me segurando em seu colo. Não sei como me recordo, mas ela está lá. Provavelmente uma mistura de amor com objeção. E comigo foi assim a vida inteira. “Como amo muito, exijo muito”. Uma máxima freudiana difícil de contestar.


E foi assim até quarta, quando morreu. Faleceu altiva, feição de dever cumprido, de que a injustiça e vileza nesse planeta de merda nada teve a ver com ela. Cheguei no quarto e sua face estava serena, como que dormindo, como que viajando para seu destino final.


É uma cena que nenhum filho deveria ver. Mas eu vi. E tive orgulho. Orgulho da mãe que tive. Da mãe que foi tudo pra mim. Que me ensinou a diferença entre o certo e o errado. Que amou meu pai. Minha irmã. E enfim seu filho preferido. Não tenho vergonha e nem receio de afirmar tal verdade. Eu apenas a sei. E isso sempre foi problema dela, como mãe, como mulher, como a pessoa querida por todas, que eu mesmo, o filho predileto, nunca consegui ser. Não estava à altura, porque isso é magia. Ela não tinha essa fórmula, sabe? Apenas era assim. Na fila do banco, no supermercado, no amor entornado por 1000 alunos. Alguns chamam de carisma, outros de vocação, alguns chamam de “mãe”.


Se no dia da despedida chegasse em casa e minha mãe estivesse viva, diria que engordei muito, ou que emagreci muito. Mas era porque precisava dizer algo, já que sempre teve enorme dificuldade em dizer que me amava, mesmo que um rim estivesse a minha disposição se precisasse.


Uma semana se passou e seus amigos e amigas me dizem que não conseguem lidar com sua morte. Quantos heróis do Olimpo gozam do mesmo tributo? O que havia de especial nela que nunca terei ou saberei? 


Certa vez, após tantas conquistas e tentativas afetivas, fúteis, mas numerosas, encontrei a mulher de minha vida, e minha mãe, como se fosse a coisa mais simples da vida, pois mães conhecem seus filhos, disse com tranquila certeza: “viu, burrinho, não era tão difícil, o enigma eram os livros, as referências, e não os quadris”. 


Tive meu último Natal e ano Novo com minha mãe em 2021...e ele foi perfeito. Simples, repleto de amor, com presentes humildes e lembranças eternas. Como deveriam ser todos os Natais e Anos Novos.


Faz uma semana que minha mãe se foi. Lembro do último beijo que lhe dei, enquanto segurava sua mão, já fria, por sua alma ter sido tomada. Lembro de tudo que fez por mim em vida. Seus valores, conceitos, a entrega a magistratura, a devoção a meu pai e irmã.


Se a agradecesse se tornaria empedernida, desaforada, xingaria, talvez. Diria então que essa fora a sua missão, sua obrigação como mãe e mulher. Gerar caráter e vida e, ao final, em seu sono eterno, sonhar com as almas que mudou, com mundo utópico em que sempre acreditou, e com a família que moldou. Não se iludam...essa foi uma mulher que abdicou de tudo pelo que acreditava. Morreu dormindo, como apenas os virtuosos merecem.


Acordo hoje no clube dos órfãos, mas meus pais estarão comigo todos os dias, me lembrando que só os membros fortes toleram tal desígnio, pois tal dor não pode ser suportada pelos indignos.


Sempre te amarei, mãezinha. Obrigado por fazer de mim um homem melhor a cada manhã. Nunca, jamais, será esquecida. Tua face estará sempre em minhas conquistas. E tais conquistas terão teu nome.



          Humberto Charles

CONTO #38: Uma pequena viagem (Ray Bradbury)



          Publicado pela primeira vez na revista de ficção científica Galaxy, em 1951, Uma pequena viagem (A little journey) é o conto de abre a coletânea A cidade inteira dorme e outros contos
          No conto o autor nos situa em outro planeta, em um futuro distante. Nessa realidade alternativa, viagens interplanetárias são possíveis e corriqueiras. Somos, então,  apresentados às personagens principais: um grupo de senhoras da melhor idade, que economizaram durante anos e anos a fio para fazer a viagem final. Mas não se trata exatamente disso que você está pensando: Essa viagem, vendida por uma figura pouco confiável, mas cheia de lábia, é uma viagem a caminho de Deus.
          Como não poderia deixar de ser, a data da viagem é marcada no ato da compra do pacote. E adiada, assim que se aproxima. Muito bem, sem problema, elas aguardam a próxima data marcada. E, mais uma vez, é adiada. Essa situação se repete vezes e vezes, até que elas se cansam. Querem uma data definitiva, e querem saber o motivo do atraso.
          O desfecho da história é, no mínimo, intrigante.


"Havia duas coisas importantes - uma, que ela era velha demais; 
outra, que o sr. Thirkell a estava levando para Deus. E ele não tinha
dado um tapinha na mão dela e dito: "Senhora Bellowes, vamos partir para o espaço 
em meu foguete e e
ncontrá-Lo juntos"?
(p.7)

"Parece que fizeram uma coisa terrível conosco", ela disse. "Não tenho dinheiro para voltar
para casa na Terra e tenho orgulho demais para ir ao governo e contar contar
a eles que um homem comum como este nos tapeou, levando
todas as nossas economias. Não sei como vocês se sentem quanto
a isso, todas, vocês, mas o motivo por que todas viemos é que tenho
oitenta e cinco anos e você tem oitenta e nove, e você setenta e oito e todas nós
estamos nos encaminhando para os cem anos, e não há nada na Terra para a gente, e não parece  haver nada em Marte, Também. "
(p.13)


Onde encontrar Uma pequena viagem: A cidade inteira dorme, de Ray Bradbury

CONTO #37: Uma questão temporária (Jhumpa Lahiri)



          Publicado pela primeira vez na revista The New Yorker, em 20 de abril de 1998, e mais tarde compondo a coletânea de contos "Intérprete de males", Uma questão temporária (A temporary matter) nos conta a história desse jovem casal cujo relacionamento está, aos poucos, desmoronando.
          A notificação de que a eletricidade seria cortada nos próximos dias durante uma hora, acaba interferindo na rotina do casal. Conforme os dias passam, o leitor entra em contato com os problemas que os dois vem enfrentando já há algum tempo, principalmente desde a perda de um bebê muito esperado.
          A autora não entrega de bandeja o que o que está acontecendo; o leitor é levado a achar que sabe direitinho do que o conto se trata - mas é enganado. Nada nos prepara para o choque de realidade nua e crua que teremos diante dos olhos. A crueldade com que ambas as partes se vinga, lenta e dolorosamente, do outro não é agradável de se acompanhar. É quase como se estivéssemos observando a uma cena que se desenrola atrás de pesadas cortinas, sendo afastadas lentamente. E o final do conto é avassalador.


"A notificação informava que era uma questão temporária: por cinco dias
a eletricidade seria cortada por uma hora, a partir das oito da noite. Uma linha caíra na
última tempestade de neve e os operários iriam aproveitar as noites mais brandas para arrumá-la.
O trabalho afetaria apenas as casas da tranquila rua arborizada na qual Shoba e Shukumar
moravam havia três anos, de onde se podia ir a pé até as lojas com fachada de
tijolos e o ponto do bonde."
(p. 9)

"Uma vez, essas imagens de paternidade haviam perturbado Shukumar, somando-se à ansiedade de ainda ser estudante aos 35 anos. Mas naquela manhã de outubro, bem cedo, as árvores ainda pesadas com folhas de bronze, ele deu as boas-vindas à imagem pela primeira vez."
(p. 11)

"Em algum momento da noite, ela o visitava. Quando ele a ouvia
chegando, deixava de lado o romance e começava a digitar frases. Ela
pousava as mãos nos ombros dele e olhava junto com ele a luminosidade 
azulada da tela do monitor. "Não trabalhe demais", ela dizia
depois de um ou dois minutos, e ia para a cama. Era o único momento
do dia em que o procurava e, no entanto, ele passara a abominar aquilo. "
(p. 16)

"Nunca falava com ele sobre Shoba; uma vez, quando ele mencionou a morte do bebê,
ela ergueu os olhos do tricô e disse:
- Mas você nem estava lá. "
(p. 17)


Onde encontrar Uma questão temporária: Intérprete de Males, de Jhumpa Lahiri

CONTO #36: Ligeia (Edgar Allan Poe)



             Publicado pela primeira vez em 1838, Ligeia (cuja pronúncia se aproxima do nome "Lídia") conta a história do homem que se casa com o amor de sua vida. Jovem, linda, inteligentíssima, cheia de vida, Ligeia preenche a vida do narrador de tal maneira que, ao adoecer repentinamente e deixar de existir, deixa um vazio imenso, impossível de ser preenchido.
               Num primeiro momento, nosso narrador tenta escapar da dor da perda irreparável abusando do ópio. Essa fuga da realidade logo se torna um fardo, e, um belo dia, entra em cena uma nova moça. Linda e cheia de vida, mas de uma beleza muito diferente da de Ligeia, Roweena encanta o narrador que acaba contraindo novo matrimônio. Porém, ele não se engana: Roweena não é páreo para Ligeia. Comparações desta com a primeira esposa são inevitáveis ao longo do tempo.
            Até que, certo dia, Roweena também adoece. Paro meus comentários sobre o enredo da história por aqui, mas o desfecho é, como não poderia deixar de ser em se tratando de Poe, assustador.  

"Juro pela minha alma que não posso lembrar-me de como,
quando ou mesmo precisamente onde travei conhecimento, pela primeira vez,
de Lady Ligeia. desde então, longos anos decorreram, e os muitos sofrimentos por que passei
perturbaram-me a memória. Ou talvez não possa recordar-me desses pormenores agora porque, na verdade, o caráter de minha bem-amada, seu raro saber, seu singular embora plácido
tipo de beleza, a emocionante e aliciadora eloquência da sua veludosa fala
musical, tivessem conquistado meu coração tão furtiva e 
constantemente que mal me dei conta deles então."
(p.17)

"Pois Deus não é mais que uma grande vontade, penetrando todas as coisas
pela qualidade de sua aplicação. O homem não se entrega aos anjos, nem se rende
inteiramente à morte, senão pela fraqueza de sua débil vontade."
(p.22)

"Eu disse que seu saber era tal que jamais encontrara semelhante em mulher alguma,
mas onde está o homem que perlongou com êxito com êxito todas as amplas áreas da ciência moral, física e matemática?"
(p.23)

"O vento soprava com força atrás das tapeçarias, e eu quis
mostrar-lhe (coisa que, confesso, eu mesmo não acreditava de todo) que aqueles
respiros quase inarticulados e as sutis variações das figuras sobre a parede não eram
senão efeitos naturais do costumeiro soprar do vento."
(p.32/33)

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